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terça-feira, 18 de abril de 2017

Eficácia da Psicanálise - O que faz um psicanalista?

O que se espera de um analista? A esta questão que Lacan se propos ele mesmo produziu, na ocasião, uma resposta  contundente e, como não poderia deixar de ser, enigmática: O que se espera de um analista é uma análise. O que faz um analista, portanto, é uma análise!. Isso nos dois sentidos possíveis que o verbo fazer, neste caso, nos aponta: 1- se espera que um analista seja capaz de levar uma análise até seu ponto de impossibilidade e, 2- que um analista possa advir de uma análise.
Encontro, em Silet (1994-1995), a seguinte afirmação de JAMiller: “O que faz o analista: falar do silêncio”. Por isso, certamente, o matema de Lacan que nos diz do silêncio do analista assim escrito: S(A/). Este matema defino  como a própria estrutura do falasser (parlêtre). O falasser tem, como enlaçamento lógico de sua estrutura, o silêncio e o analista deverá, quando falar, falar a partir do silêncio, ou, como nos diz JAM: “guardar o silêncio totalmente, ao falar”. Este é o segredo da interpretação que deverá preservar o lugar do que não se diz, ou melhor ainda, do que não se pode dizer. Esta talvez seja a mais preciosa das interpretações: o desacordo do analista em ocupar um lugar, que lhe demanda o analisante, que permita ao sujeito nutrir seu sintoma de sentido. Desta forma, o analista deverá se colocar mais ao lado daquilo que se cala do que ao lado do que fala, no analisante. 
O S(A/) nos diz do que permanece do significante após a palavra ter sido eliminada. Esta é a consequência da intervenção de um analista que vai propiciar ao significante da falta no Outro assumir seu valor de letra, ou seja, o valor de significante escrito. A escritura, podemos dizer, é a única forma que o ser falante tem para subtrair-se aos artifícios do inconsciente. Enquanto preso à palavra, o sujeito não tem como sair das artimanhas que o inconsciente apresenta e que Freud definiu como sendo suas formações. Isto se explica pelo fato de que, uma letra, ao contrário do significante, tem uma identidade. Enquanto que um significante só se apresenta a partir da diferença e sempre chama um segundo significante. Conhecemos bem as definições do significante que Lacan vai buscar em Saussure: que o significante é profundamente diacrítico – somente se coloca a partir da diferença e da distinção. A letra se basta. Um bom exemplo encontramos no número matemático. O número é cifra e não tem efeitos secundários de significado. Um significante, por outro lado, está posto como aquele que pode representar um sujeito para um outro significante. Ao sujeito, enquanto sujeito do inconsciente, sujeito dividido, só resta permanecer nesta brecha do significante como sujeito a advir, num futuro anterior.
A letra, por outro lado, tem uma identidade. O que se pode traduzir no inconsciente por uma letra, o sintoma, tem dois valores: S1 e a. Estes dois valores nos dizem que o Outro é uma matriz de dupla entrada: a e o Um do significante. 
Sabemos, a partir dos textos de Lacan dos anos setenta, que é possível articular uma certa contabilidade ao gozo. Isto se apresenta sob uma forma bem simples se pensarmos que o inconsciente está estruturado como uma linguagem e que, os significantes que constituem esta cadeia nada mais são do que uma forma que assume a transformação do gozo em algo contábil: a pulsão parcial e seu quantum de energia que Freud tratou de explicitar quando inventou a libido.  
O sintoma, faz o caminho inverso do que tenta o inconsciente. O sintoma é uma função: Lacan nos diz que é uma função matemática, um f(x) que realiza a transferência da contabilidade ao gozo, do simbólico ao real. E o faz ao traduzir o que há do inconsciente em uma letra.

Neste ponto devemos retomar a questão do silêncio do S(A/) ao acrescentarmos que a palavra, na verdade, guarda o silêncio e mesmo, podemos dizer, que ela falha diante do gozo. Por isso uma fantasia não pode ser falada, não pode ser interpretada, mas construída. É o que nos diz Freud a propósito do paradigma da fantasia que se define nos termos mesmo de sua construção como: “uma criança é espancada”. O cerne desta construção só a alcançamos a duras penas pois, o que se constitui como pivô desta cena é o que não nos lembramos, é o que não tem reminiscência e que precisa ser reconstruído. Não se trata, obviamente, de uma construção qualquer, mas de uma construção que responde a uma necessidade lógica em relação a algo que não se pode dizer. “Há o silêncio no coração da fantasia” (JAM).
Este silêncio, podemos correlacioná-lo ao famoso silêncio da pulsão de morte que Freud tão bem descreveu em seu texto “O Eu e o Isso” designando-lhe, como lugar, um possível núcleo do Isso. Assim, quando nos vemos aprisionados por uma pulsão qualquer, experimentamos o constrangimento de não podermos responder com palavras a este silêncio amedrontador que nos coloca servo de um circuito que só temos consciência no momento em que ele se fecha ao final de sua curva, fazendo retornar sobre o sujeito, um sentido-gozado sob a forma do discurso do Outro. 
Isso, que está no coração da fantasia e que habita o circuito pulsional nos diz de uma afinidade do silêncio com o gozo. Se, por um lado, esta afinidade se apresenta sob a forma da vergonha e da culpabilidade, tão comuns nos neuróticos, por outro lado ela nos diz deste ponto, sobre o qual insisto aqui: o silêncio diz respeito a uma falha mais essencial da palavra diante do gozo. O que talvez seja mais incisivo está expresso pelo que a mulher pode dizer de seu gozo: “Silet”, nos lembra Lacan.
Diante de tudo isto há um ponto que considero fundamental: se o analista se faz a partir do silêncio sobre o qual ele se assenta para sustentar uma análise até o seu final, ele precisa estar atento ao risco que existe da infiltração de gozo que este silêncio propicia. Uma das saídas possíveis para evitar este risco nos aponta na direção da importância da supervisão. 

terça-feira, 4 de abril de 2017

Sobre a Pulsão

A Pulsão, assim como o conceito de Desejo do Analista, cunhado por Lacan , é um conceito limítrofe. Ele se apresenta no ponto de junção e disjunção, de união e de fronteira. A pulsão, entre o somático e o psíquico. O desejo do analista, entre o desejo e a demanda.  
A pulsão é um conceito inventado por Freud para dar conta de sua clínica e fazer frente às suas próprias demandas de prover sua teoria de um lastro científico. Por isso é que na primeira página do seu trabalho sobre “A pulsão e suas vicissitudes” ele discute, longamente sobre o cientificismo deste conceito, para concluir que a pulsão é um conceito bá­sico, apesar de ainda obscuro.
A noção de pulsão em Freud é absolutamente nova e a maneira como ele a constrói, a partir da experiência do inconsciente, impede que o pensamento psicológico ve­nha lançar mão ao recurso do instinto, disto que podemos chamar de uma moral da natu­reza, como forma de não pensar as consequências da brecha aonde o inconsciente se constitui. Esta é a forma encontrada para quebrar com o que poderia haver de resquícios de um uso, deste vocábulo, anterior à psicanálise como aconteceu e acontece com o conceito de inconsciente.
  Vamos dizer que a pulsão não é a pressão, nem mesmo pode­mos dizer que é natural esta sequência que se apresenta pelos termos: fonte (Quelle), objeto (Objekt) e alvo (Ziel). Ao contrário, produto da incidência da linguagem, a pulsão ex-siste, só se apresentando enquanto um circuito, um circuito que não é outro senão a via que a demanda traça no campo do Outro. Circuito este que deixa como questão saber como o su­jeito encontrará aí seu lugar, pois assim como o próprio conceito abriu sua via no real e se estabeleceu como um “Grundbegriff”, demarcando este real, a cada volta a pulsão produz como consequência um novo sujeito, que como tal permanece como um sujeito a vir, já que vai desaparecer sob o significante que o representa para outro significante. 
Vamos acompanhar, com Lacan cada um dos termos que constituem esta ficção que é a pulsão.
Comecemos pela pressão, que pode ser identificada, desde o princípio a uma pura e simples tendência à descarga, como produto de um estímulo, de um suplemento de energia: Qn, nos diz Freud no Projeto. No entanto, é preciso diferenciá-la quanto a sua origem, de onde ela vem. Esta excitação, “Reiz”, para empregar um termo de Freud, é interna. Nisto ela se diferencia fundamentalmente de todo estímulo externo. Podemos exemplificar com as chamadas necessidades, o “Not”, muito bem demonstrado pela fome ou sede. No entanto, é fundamental distinguí-la do que poderia ser uma manifestação a nível do or­ganismo como um todo. Esta excitação é uma manifestação do campo freudiano como tal, campo este que está descrito como “Real-Ich” no texto do Projeto, nos lembra Lacan, “Real-Ich” que é concebido como suportado, não pelo organismo inteiro, mas pelo sistema nervoso. Existe, nesta concepção do “Real-Ich”, uma característica de sujeito planificado, objetivado. Esta energia, esta “Triebreiz” é o que vai investir certos elementos do campo em questão, investi-los pulsionalmente. Este in­vestimento, ao contrário do que ocorre com as funções biológicas, que sempre tem um ritmo e se sustentam em uma força momentânea (“Momentane Stoss-kraft”) possui como carac­terística ser uma força constante (“Konstante Kraft”)
Para tratarmos do outro termo, alvo, vamos lembrar, com Lacan que a satisfação (Befriedigung) da pulsão consiste em atingi-lo. No entanto, convêm dizer que o próprio Freud vai nos afirmar que uma das quatro vicissitudes da pulsão é a sublimação, que esta,  exatamente, é inibida quanto a seu alvo. Nem por isso ela deixa de nos dizer da satisfação da pulsão. (O exemplo do beijo e da fala é dado por Lacan.) Esta afirmação nos leva ao fato de que “o uso da função da pulsão não tem, para nós, outro alcance que não o de colocar em questão isso que é da satisfação”.
A clínica nos coloca frente a frente com essas situações todos os dias. Cito Lacan: “os pacientes não se satisfazem, como se diz, disso que eles são. E, portanto, nós sabemos que tudo isso que eles são, tudo isso que eles vivem, seus sintomas mesmo, pro­vêem da satisfação. Eles  satisfazem qualquer coisa que vai, sem dúvidas, ao encontro disso que poderia lhes satisfazer ou, talvez melhor, eles satisfazem a qualquer coisa”. Em outras palavras, podemos dizer que eles se dividem entre estar satisfeitos por algo e satisfazer a algo. Toda a nossa questão é procurarmos saber o que é que é isso que é aí satis­feito. 
Vamos tentar esclarecer esta questão do prazer/desprazer e satisfação. O primeiro ponto sera a distinção entre o prazer e a satisfação: a clínica se explica pela diferença entre o que dá prazer e o que satisfaz.
É fundamental não confundir o que satisfaz a alguém, com o que lhe dá prazer. Na neurose, o que parece estranho, fora do sentido, para o sujeito é que seu sintoma produz desprazer, mas eles têm a idéia de que há uma razão para isso: “Deus escreve certo por linhas tortas”, p. ex..
No entanto, quando o sujeito extrai um pouco de prazer com o que está mais além do prazer, isto é, consegue um pouco de prazer com o gozo, trata-se aí de sua fantasia. Mas, quando o sujeito vai satisfazer a algo que o confronta com o mais além do princípio do prazer, dizemos que é um assunto que se passa entre a satisfação e o gozo, e que o que está em questão é a pulsão. Em outras palavras, se colocamos o sujeito do lado da fantasia, ele será satisfeito por algo, se o colocamos do lado da pulsão, teremos um sujeito que satisfaz a algo. Isto é para dizer que, de modo algum o sintoma será o mesmo se o abordamos pela dimensão do prazer e do gozo, ou do gozo e da satisfação. 
Podemos abordar o sintoma de duas maneiras, conforme nos aproximamos dele pela via da fantasia ou da pulsão.
Pela via da fantasia, aqui localizado entre os pontos de gozo e prazer, vemos que o sintoma vai se instalar neste ponto para fazer valer uma certa proteção, ignorar, aquilo que é a causa do desejo. No entanto, estando assim colocado, ele também é capaz de tirar proveito da operação da fantasia que consiste em transformar gozo em prazer, de forma tal que os benefícios secundários vêem para propiciar prazer no desprazer. É o que escapa, apesar do recalque, que retorna como mais-de-gozar, e não como causa. 
Por outro lado, se examinamos o sintoma pelo viés da pulsão, o que vamos constatar é que o sintoma satisfaz a um gozo, exatamente pela interpretação que o neurótico faz da demanda do Outro, como sendo equivalente ao seu desejo. No entanto, colocadas as coisas deste lado, do lado do tesouro de significantes, a possibilidade de transformarmos a queixa em bem-dizer vai se apresentar de uma forma que pode ser descrita desta forma: Até onde se satisfazia gozar, deverá agora tentar examinar a que gozo satisfaz esta divisão sobre a qual você tem o dever de bem-dizer. Ali onde você tinha benefícios secundários, terá agora um gozo permitido. Em outras palavras, o benefício secundário - que é da categoria do gozo clandestino - se transforma num bem dizer - gozo permitido.
Retomemos o nosso percurso: estando satisfeitos o que levaria sujeitos neuróticos a procurar uma análise? Podemos dizer que é na tentativa de se satisfazerem que o desprazer advém e que por isso, eles se dão muito mal. “Até um certo ponto, é esse muito mal a única justificativa de nossa in­tervenção”, como analistas. 
Quanto ao alvo, alcançar a satisfação, não podemos dizer que ele não seja alcançado, mesmo produzindo um desprazer. “O que temos diante nós em aná­lise, é um sistema onde tudo se arranja, e que atinge seu próprio tipo de satisfação.” E, exatamente por sabermos que é possível utilizar-se de outras vias, é que nos autorizamos a ofertar nosso trabalho. E estas outras vias só são possíveis, no que se refere ao nível da pulsão, quando o estado de satisfação pode, aí, ser retificado.
Quanto ao objeto, para podermos tratar dele será necessário lembrar aqui a categoria do impossível. Este impossível é o real, que aparece em Freud como o “obstáculo ao princípio de prazer. O real é o choque, é o fato de que isso não se arranja logo, como quer a mão que se estende em direção aos objetos exteriores. O real, continua Lacan , se distingue pela sua separação do campo do princípio do prazer, por sua desexualiazação, pelo fato de que sua economia admite qualquer coisa de novo, que é justamente o impossível.” Ora, o princípio do prazer pode ser caracterizado exatamente pelo fato de que o impossível, aí estando presente, não é jamais reconhecido como tal. A satisfação pela via da alucinação é uma ilustração de como o princípio do prazer não reconhece o impossí­vel. Esta possibilidade de tratar o impossível é que nos leva a concluir que não é pela apreensão do seu objeto que a pulsão se satisfaz. A distinção entre “Not” e “Bedürfnis”, ou seja, entre necessidade e exigência pulsional aponta para o fato de que nenhum objeto da necessidade pode satisfa­zer a pulsão. A pulsão se satisfaz de seu percurso, de tal maneira que, no que diz respeito à pulsão oral, não é bem da nutrição que ela vai se satisfazer, mas sim ao “escolher o cardápio”. É como ela  recorta o campo do Outro e traz de volta significantes: “isso que vai à boca retorna à boca”. “É isso que nos diz Freud, nos lembra Lacan: O objeto na pulsão, sabemos que não tem, falando propriamente, nenhuma impor­tância. Ele é totalmente indiferente”.
O objeto da pulsão oral, por exemplo, nunca é lembrado como sendo o ali­mento, mas sim o seio. Seio este que, no que diz respeito à sua função na satisfação da pul­são seria formulada desta forma: ele aí se coloca para que “a pulsão aí faça a volta” (Lacan nos chama a atenção para a ambigüidade que tem este “faire le tour” na língua francesa: dar a volta ou escamo­tear).
Uma palavra mais sobre o objeto da pulsão: é dito que eles são objetos par­ciais, mas não porque “eles sejam parte de um objeto total que será o corpo, mas, sim, em função de que eles só representam parcialmente a função que os produz”.
Vejamos agora o que podemos dizer sobre a fonte. A delimitação mesma da “zona erógena”, que a pulsão isola do metabolismo da função, ou seja a diferencia do estômago, esôfago, etc, é feita de um corte que a entrada do significante promove no corpo e vai encontrar subsídio na sua própria estrutura anatômica de ser uma margem ou uma borda. É a brecha do inconsciente que se apresenta no corpo, para dar-lhe testemunho e manter o nível mínimo de tensão, manter uma força constante (Konstante Kraft). 
Para concluir vamos dizer que a partir do que vimos com este desmonte é que a pulsão só se sustenta enquanto uma mon­tagem, uma montagem que se apresenta como não tendo nem pé nem cabeça, bem ao estilo surrealista, nos lembra Lacan. Mas, na verdade esta montagem - longe de ser uma monta­gem imaginária  como podem sugerir as imagens do circuito pulsional que Lacan utiliza - é uma montagem gramatical, onde as inversões tais como exibicionismo - voyeurismo, ou masoquismo - sadismo, são inversões gramaticais, “inversões do sujeito e do objeto, como se o objeto e o sujeito gramaticais fossem funções reais”.

A ética da Psicanálise, portanto, se refere a uma identificação, no cerne da relação ética ao desejo com o limite mesmo que a verdade impõe à toda tentativa de se totalizar o campo de determinação da estrutura. A conexão ética do bem dizer ao que não pode ser totalmente dito, passa portanto, necessariamente, pelo trabalho da pulsão que, sendo parcial sustenta o saber inconsciente através da articulação dos significantes em uma gramática capaz de nos dizer do lugar do sujeito diante do Outro, na medida mesmo em que este lugar está, fundamentalmente, determinado pela relação que este sujeito estabelece com o objeto ao qual se liga, na tentativa de não desaparecer nos intervalos da cadeia significante. É por isso que podemos dizer que a ética que nos concerne pode ser localizada nesta brecha, matemizada como S(A/), onde a falta de garantias se abre à dimensão da responsabilidade. “Não há clínica sem ética”, nos diz JAMiller. Não há clínica Psicanalítica se não levarmos em conta que o desejo que move a ética da psicanálise é co-extensivo dessa falha que define o inconsciente como falta-a-ser. É nesse topos que vamos ver operar o desejo inédito que surge no momento em que um analisante se torna analista. 
Assim como “A Mulher”, o analista que advém desta operação vai ocupar um lugar onde a estrutura não dá conta de conter: a extimidade do objeto “a” que vai, ali,  apresentar-se, na medida que o analista se coloca numa posição tal que possa fazer reinar este objeto como causa de desejo.