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segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Psicanálise ou Psicoterapia: O lugar do analista! (II)

Vamos retomar a questão da transferência pelo o esquema L, na tentativa de explicitar o mecanismo da relação narcísica: Vamos instalar o sujeito que chega no lugar de S, dizendo que ele aí está na mais pura ignorância do que lhe causa mal. O que este sujeito vem buscar no Outro a quem ele supõe um saber é um traço qualquer que possa dizer-lhe o que, na verdade, ele é. Este traço, poderá ser tomado aqui como o 'a', na medida que este traço faz exatamente a borda deste objeto que se encontra como um vazio, no espelho. A partir daí, vai se estabelecer a relação de transferência e o sujeito vai se identificar a este traço na esperança de que, assim colocado, seja amado pelo Outro que vai lhe fornecer a resposta para a questão de sua existência. 

                                                         

Alguns esclarecimentos são necessários: Na verdade a questão da existência do sujeito se coloca a partir de um Outro lugar, e não a partir de um outro sujeito como se tenta acreditar na relação transferencial, que se sustenta no eixo a - a', eixo narcísico, lugar do engodo amoroso. 
Cada vez que o analista intervêm, ele o faz do lugar do Outro (A), como se fosse a boca do Outro visando o sujeito do inconsciente ($), naquilo que ele tem de mais íntimo, kern unseres wessen, o coração do nosso ser, ou seja o que não tem palavra [S(A/)], ou ainda a causa de desejo. 
O que se espera liquidar, então, é esta suposição de saber que se estabelece no eixo da relação narcísica que tende a exercer o fechamento do inconsciente. 
Quando Lacan trabalhou o esquema L, ele nos disse que este eixo narcísico, imaginário, é o muro da linguagem. Isto pode parecer estranho, colocar a linguagem no eixo imaginário, uma vez que a linguagem seria simbólica. No entanto, o que temos aqui é um muro da linguagem que se constitui pelo véu do sentido que impregna a fala do sujeito quanto ele se dirige ao outro, exatamente para escamotear a sua relação ao Outro. Desta forma estará impedido o  acesso do simbólico ao real, estabelecido, aqui, pelo eixo A - S. Função esta que vai ser atribuída, mais à frente no ensino de Lacan, à fantasia fundamental. Por isto podemos até mesmo desenhar o matema da fantasia neste eixo a—-a’ ($<>a). Ora, cada vez que o analista intervêm, ele o faz do lugar do Outro, como nos diz Lacan em "A direção da cura..." promovendo uma brecha neste muro da linguagem, 
esburacando esta cortina de sentido que cega o sujeito". Este momento se traduz, na clínica, por aquela surpresa que têm, analista e analisante, quando o sujeito que está falando no divã, imerso e gozando de um sentido preestabelecido, se percebe pego em um vazio que produz uma mudança. Este momento é fugaz, mas fundamental. É o momento em que podemos testemunhar o aparecimento do sujeito como resposta do real no estabelecimento de um novo sentido que se apresenta promovendo o fechamento do inconsciente. Podemos dizer que é isto que produz um ato: relança o sujeito em uma nova cadeia significante, uma nova série produzindo no lugar da verdade um saber que possa sustentar a causa de desejo. 
Retomando a questão da identificação que, a meu ver é uma das balizas das diferenças que podemos estabelecer entre a psicanálise e a psicoterapia, vamos observar que ela ocorre a partir da escolha que o sujeito faz de um certo traço no Outro. Não é um traço qualquer. É um traço tal que o sujeito acredita dizer do desejo deste Outro. É um traço que vai dizer que deste ponto o sujeito vai ser amado pelo Outro. Este traço idealizado vai constituir o núcleo de sua fantasia, a borda do enquadre da realidade para este sujeito, porque é a partir deste traço que vai se constituir a fantasia fundamental do sujeito e que vai nos dizer como o sujeito interpretou o desejo do Outro. Esse traço é o traço unário (Einzeger Zug). Em outras palavras, este traço está inscrito no S1 ao qual o sujeito se encontra assujeitado. É o mestre que dita o caminho que o sujeito deve seguir para ser amado. Quando Lacan diz que a interpretação deve visar para além da significação que se produz a partir do significante ao qual o sujeito se encontra assujeitado, é a isso que ele está fazendo alusão. Ora, tudo isto poderá ser traduzido pela fórmula lacaniana: "o desejo é sua interpretação". 
A identificação especular imediata é apenas a sustentação da identificação que está em jogo nesta entrada do S1, já que é esta identificação primeira que sustenta a perspectiva do sujeito no campo do Outro. Em outras palavras, o que acabo de lhes dizer pode ser assim descrito: eu desejo o que o Outro deseja que eu deseje. Esta é a perspectiva do sujeito no campo do Outro onde a identificação especular poderá ser vista como algo que satisfaz. Esta identificação estabiliza a imagem e sustenta o sujeito no mundo de alguma maneira. 
Na verdade nunca nos livramos disto inteiramente, sempre vão existir pontos de identificação, de ancoragem, afinal Lacan coloca no fim do seu Grafo do Desejo o matema I(A): impossível viver sem ideais!
No percurso pelo gráfico sempre se esbarra em pontos de ancoragens onde se busca uma identificação. Na verdade cada ponto de estofo nada mais é que ponto de identificação significante. 
Mas, retornando ao percurso de uma análise, vamos dizer que o mal-estar a partir da claudicação do sintoma produz uma demanda ao Outro para que seja reconstituído o sintoma. Uma vez feito o percurso e experimentado o vazio no ponto onde a falta do Outro se apresenta, vai acontecer a possibilidade de se mudar o endereçamento da demanda 
que não será mais de reconstituição do sintoma, mas de relançamento do desejo de saber. Não mais de apaziguamento no sintoma, mas de uma inquietação produtiva. É o trabalho de transferência se transmutando em transferência de trabalho. 
De volta ao ponto do Ideal do Eu, o ponto no campo do Outro que o sujeito elege como sendo aquele onde ele pode ser visto pelo Outro e,portanto, amado, é o que lhe permitirá se suportar numa situação dual. Caso não houvesse esse ponto de ancoragem, de identificação no campo do Outro, esta dualidade especular seria insuportável. É o que acontece na psicose, quando a “Bejahung” fundamental não acontece e, como consequência, vai faltar ao sujeito este ponto de ancoragem produzindo uma tendência a fazer desaparecer o intervalo entre um e outro, sempre que a dualidade especular ocorrer. Na psicose a saída é o delírio, a erotomania; na neurose é o amor. A diferença entre um e outro fica por conta da certeza que o psicótico tem. O neurótico, mesmo que seu amor seja tão intenso que fica como que colado ao outro, vai existir uma certa distância que é colocada pela dúvida: será que ele me ama mesmo? Na psicose a certeza é plena: ele me ama, ou me odeia. 
Enquanto miragem especular, o amor tem a essência do engano, é aqui que se instala o único significante necessário a introduzir uma perspectiva centrada sobre o ponto do ideal. Este ponto, este traço, para que ele possa se tornar um ponto de visada do sujeito, tem que ser um traço que se refere ao objeto 'a'. É o traço da borda de onde o objeto foi subtraído. O 'I' é o significante que desenha o contorno nesta borda. É um significante qualquer, mas não pode ser qualquer um. É aquele que elegemos por estar mais próximo do objeto perdido, por isso Lacan matematiza assim este ideal: I(a). É sustentado por este traço que vai se instalar o sujeito suposto saber a partir do que Lacan chamou de significante da transferência. Todo o trabalho de análise, todo o trabalho da interpretação, vai na direção de promover a separação deste I do a, para reconstituir, no final, o I(A) na transferência de trabalho. 
Nesta coalescência do traço com o objeto, um dando suporte ao outro, um fazendo o outro existir na sua ausência, como ponto de visada, é que vai se estabelecer o engano da transferência. Este engano, podemos dizer muito simplesmente, é o seguinte: se você tem o traço da borda do objeto, você tem o objeto. Neste ponto acontece algo de paradoxal pois, ao se perceber que as coisas não são bem assim, ao se deparar com o vazio deste objeto vai acontecer, como diz Lacan, a descoberta do analista. Sim, pois se ao se dirigir ao sujeito suposto saber para se sustentar na alienação do seu sintoma, ele encontrar um analista, ele vai se deparar com este vazio, com esta inconsistência do Outro. 
Em outras palavras, vamos dizer que o sujeito busca um analista que vai sustentar o lugar de semblante onde vai reinar o objeto, mas somente para, ao fazer uma interpretação, dizer que esse lugar é vazio. Sabemos que toda intervenção do analista aponta para o final de análise. Em outras palavras, não há final de análise sem interpretação. 
Cumpre ressaltar aqui que há intervenções do analista que não são interpretações. Em outras palavras, é preciso que haja pelo menos uma interpretação que faz descolar o I do a para que se possa alcançar o final de análise. 
Um analista é aquele que escuta por detrás dos ditos do analisante. É preciso que o analista saiba que existe um para-além da demanda endereçada ao sujeito suposto saber, que é uma demanda de amor. É preciso que ele saiba se a demanda de amor aponta para um mais além e o desejo aponta para um mais aquém. Por isso Lacan forjou esta frase tão contundente quando ele tratou do amor de transferência: "Eu te amo, mas porque, inexplicavelmente eu amo em ti qualquer coisa mais do que tu, o objeto a, eu te mutilo". E Lacan continua dizendo que apesar desta fala apontar para o oral, ela nada tem a ver com a nutrição pois seu acento recai totalmente neste efeito de mutilação. É o que vai nos apontar a possível continuação da fala do analisante: "Eu me dou a ti, mas esse dom de minha pessoa - mistério!, se transforma, inexplicavelmente em presente de merda". 
Na verdade, se pensamos no agalma, este que sustenta a transferência, este que está dentro do Sileno e que ninguém viu, o que está dentro deste sujeito é merda. Quando, diz Lacan, após esta passagem em que o psicanalista se transforma em resto, em merda, podemos dizer é que será possível dar-nos conta da vertigem que acontece quando estamos diante de uma página em branco. Esta é uma experiência que, acredito, todos já vivemos: enquanto as idéias estão na nossa imaginação tudo corre fácil, na hora de passar para a folha de papel em 
branco que fica à nossa frente, ofuscando nossa ação, as coisas não são tão belas, na verdade é merda. Se o sujeito não pode tocar nesta folha em branco, diz Lacan, é porque ele a toma como papel higiênico. Esta distância entre o ideal e o objeto criado, estabelecido pelo princípio de realidade é que promove esta desidealização aterrorizadora. 
Como dizia a pouco, a liquidação da transferência é um assunto de destituição do sujeito suposto saber que se transforma num resto, exatamente este resto que nunca foi absorvido pelo saber suposto. Ao final, o esvaziamento do analista vai deixar um resto que será elevado a condição de causa de desejo. É quando, finalmente, o analista estará reduzido ao representante da representação do objeto "a". 

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