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terça-feira, 30 de agosto de 2016

Mais além do Édipo IV

Vamos, agora, trabalhar o analista e seu discurso. 
A posição do objeto “a” como agente é a possibilidade de fazer surgir o desejo de saber a partir da colocação em ato do que Freud nomeou como associação livre. Isto significa fazer valer a transferência para produzir a verdade de um sujeito. É uma verdade que difere da que é produzida pelo Discurso do Mestre, na medida em que o mestre, ao abrir mão do seu gozo e ao privar o escravo da possibilidade de dispor de seu corpo acabou deixando-lhe o gozo. É este gozo que o mestre exige de volta pelo viés do mais de gozar. Para que isso aconteça, nos diz Lacan de uma forma irônica, “o senhor faz um pequeno esforço para que a coisa funcione – quer dizer, dá a ordem”.

                                                                  

É no Discurso do Mestre, por excelência, que se situa o mais-de-gozar. Este mais-de-gozar nunca será causa de desejo para um mestre, pois a ele a verdade está interditada. Interditada pelo gozo que se produz e por nada se querer saber das “fantasias mortíferas” que se sustentam sob a barreira do gozo. Por isso, aqui, a articulação da fantasia é impossibilitada. Em outras palavras, nada se pode saber da divisão do sujeito: “o discurso do mestre exclui a fantasia”
Enquanto para o mestre o saber está excluído, pois só interessa que isso caminhe, no Discurso do Analista, o saber vem escrever-se, exatamente, no lugar da verdade. Sua articulação leva, exatamente, à presença em ato do desejo de saber.

                                                           

Esta reviravolta tem como sustentação o que pode ser escrito do Nome do Pai quando este está colocado no lugar da verdade. Esta é uma forma de se explicitar que “o saber interrogado em função da verdade tenha um sentido”. Só há sentido se o Nome do Pai foi inscrito produzindo o que chamamos: significação fálica. Esta inscrição é a possibilidade que se constrói de fazer do objeto “a” uma causa de desejo. Para isto, vamos relembrar o trajeto deste conceito, do Nome do Pai, no ensino de Lacan. 
Na metáfora paterna, primeira operação de Lacan com respeito ao Édipo, nós o acompanhamos em seu esforço de fazer passar o pai do mito à estrutura. Aqui pai e mãe são significantes: do lado do pai, o nome, do lado da mãe, o desejo. O Nome do Pai articula a interdição do incesto com a castração, significando falicamente o desejo opaco da mãe. Em outras palavras, aqui se enlaça o desejo à lei. 
No entanto, esta operação deixa de assinalar o destino do gozo que está incluído no desejo da mãe. Apenas assinala que o Nome do Pai tem a função de dar um sentido ao gozo que parasita o sujeito, deixando de fora o resto irredutível à simbolização do Nome do Pai. Este resto que permanece, Lacan chamou de objeto “a”. É este objeto “a” que vai questionar a eficácia do Nome do Pai em nomear, pois ele resiste a toda nomeação, deixando claro que o Nome do Pai é insuficiente para localizar o desejo do sujeito. É isto que Lacan designa pelo matema S(A/): falta o significante que poderia nomear o desejo do sujeito.
Por esta operação o Pai se faz suporte da barra no Outro e diz da brecha onde habita o gozo, este resto que é o objeto “a”. Esta é uma constatação de que a libido tem aí um ponto não representável que o Pai nunca pode nomear. Por isso é necessário um passo a mais: mais além do pai, mais além do Édipo. Mas, atenção, a psicanálise, sem o Nome do Pai seria um delírio, nos diz Lacan em sua Proposição de 9 de outubro. O pai, mesmo que não consiga simbolizar todo o gozo, merece este nome se é capaz de dar uma versão do objeto “a”. Em outras palavras, trata-se de um pai que é capaz de orientar seu desejo a um objeto “a” como causa. Trata-se de um pai perversamente orientado: um pai que faz de uma mulher objeto “a”, causa de seu desejo, quer dizer, um pai que não recua frente ao impossível do gozo. Este pai é o que “afronta o gozo de uma mulher”. Diante deste gozo impossível, mítico, global, o pai seria capaz de recortar um objeto “a” para fazer dele causa de seu desejo. 
 Esta última elaboração de Lacan abriu a possibilidade para se falar em pluralização dos Nomes do Pai. Assim o Nome do Pai passa a ser um significante mestre, um S1. O universal do pai, o pai da horda, da tradição, fica do lado da religião, enquanto que o significante do Nome do Pai é o que vem dar conta da inscrição singular do sujeito no Outro, tanto no que diz respeito ao significante como ao nível do gozo. 
A estrutura do Discurso do Analista aponta isso. O objeto “a” como agente, como mandante, só funciona se um sujeito foi marcado pela inscrição do Nome do Pai. Somente assim ele se coloca em condições de produzir um Nome, um S1, que, herdado do pai, ele tem de ser conquistando para faze-lo seu nome próprio. É este nome-próprio, nome do gozo, o que nomeia seu modo de gozar e que vai fazer da relação de um sujeito a seu objeto “a”, uma relação absolutamente singular, produzindo um saber que foi interrogado em função da verdade. Um nome que diz como a inscrição do Nome do Pai aconteceu para um sujeito. 

Por isso um final de análise tem suas vicissitudes e suas singularidades que podem ser transmitidas, mas nunca estandardizadas sob a égide de uma tradição.

terça-feira, 9 de agosto de 2016

Mais além do Édipo III

Vamos continuar pelas veredas dos discursos, tal como Lacan nos apresenta, seguindo os caminhos que nos levam mais além do Édipo.
No capítulo que nos servirá como referência aqui, o fio condutor está colocado já no início: “é por estar mascarada a verdade do discurso do mestre que a análise adquire sua importância”.
Lacan retoma aqui os discursos para discuti-los à luz da verdade. Ele começa pelo Discurso do Mestre para dizer que o lugar de ordem, o lugar de agente, está ocupado pelo S1 e que tem como característica ser dominado pela insistência em nada saber do sujeito que está colocado no lugar da verdade. O mestre nada quer saber da verdade. Ele quer apenas que isso caminhe. É a esta determinação que o sujeito reage, tomando como princípio acreditar que ele é unívoco. Sua divisão está, desde o princípio, escamoteada pelo trabalho que é imposto ao escravo de produzir um saber que dê conta da univocidade do sujeito, mascarando-lhe a divisão. No entanto, sabemos que o sujeito é dividido. Dividido, nos lembra Lacan, entre o “não penso” e o “não sou”
Esta divisão é explicitada no Discurso da Histérica, quando o lugar da verdade é ocupado pelo objeto que divide o sujeito, apontando para: “ali onde penso não me reconheço, não sou – é o inconsciente. Ali onde sou, é mais do que evidente que me perco”.
O Discurso da Histérica também se presta a determinar a verdade como sendo possível apenas por um semi-dizer. A verdade se apresenta sempre como um enigma. Enigma que se apresenta sob a égide do objeto “a”, aquele que escapa à nomeação do Pai. Já o sujeito está nos dois lugares, ali onde se pensa e não é, e ali onde não se pensa e é.
Ao examinar o Discurso Universitário constatamos que a verdade, como “meio-dizer”, acaba por ganhar sentidos “singularmente opostos” em cada discurso. 
O Discurso Universitário “mostra onde o discurso da ciência se alicerça”. Assim Lacan o introduz nesta lição de seu seminário. E, seus efeitos acabam por demonstrar as consequências da presença do “saber desnaturado de sua localização primitiva, ao nível do escravo por ter se tornado puro saber do senhor, regido por seu mandamento”.
Este movimento de um quarto de volta instala o mandamento do mestre no lugar da verdade que é da ciência: “vai, continua. Não pára. Continua a saber sempre mais”! O interessante é que este deslocamento do signo do mestre para o lugar da verdade acaba por apagar toda pergunta sobre a verdade: “o S1 do mandamento “Continua a saber” – pode velar, sobre o que este signo, por ocupar este lugar, contém de enigma, sobre o que é este signo que ocupa tal lugar”
Outro lugar que é discutido neste capítulo, sempre em referência à verdade, é o lugar do Outro, daquele que trabalha: “no discurso do mestre é o escravo, no do universitário é o estudante”. Ambos têm a função de fazer a verdade brotar. O que o astudado (fórmula que propõe Lacan para dizer do objeto a no lugar do Outro que trabalha) tem que produzir é o sujeito da ciência, nem que seja com a sua própria pele. Provêm daí, provavelmente, o mal estar que sempre está presente entre os astudados, sempre às voltas com uma demanda de dar conta do o enorme número de textos produzidos nas universidades e, muitas vezes, compelidos eles mesmos a produzi-los. Por isso a alusão de Lacan ao fato de que a ciência tem nos homens seu húmus. Esta é a conseqüência de se ter no lugar da verdade, diz Lacan, “o puro e simples mandamento do mestre”: Continua a saber!

(continua…)