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quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Sobre a Estrutura dos Discursos (IV)




Quero, neste momento, chamar a atenção para estes dois termos que Lacan escreve na fórmula de seus discursos: impotência e impossibilidade. Ele aí os instala para dizer que "é somente ao acuar o impossível em seu último reduto que a impotência adquire o poder de fazer o paciente transformar-se em agente."
Em outras palavras, o que surge neste forçamento que a presença do analista instaura, é que a impossibilidade que aparece em ato a cada revolução, joga com a estrutura, para que a “impotência mude de modalidade”. É assim que a linguagem inova a partir do que se revela do gozo e faz surgir a fantasia que ele, o gozo, realiza por algum tempo.
Esta fantasia, que traz em seus termos a realização mesmo do sujeito em sua esperança de poder tamponar a falta-a-ser com o que pode fazer-se semblante de ser, ou seja o objeto pequeno "a", "só se aproxima do Real à medida que o discurso reduz o dito a cavar um furo em seu cálculo."
Já o enigma que está posto no Discurso do Mestre é, de acordo com Lacan, definido como: não se pode dizer simplesmente que "todo saber, por ser saber, se sabe como tal". 
O que a experiência da psicanálise nos ensina é que o inconsciente, do qual o Discurso do Mestre apresenta a estrutura, é da ordem do saber: "algo que liga, numa certa relação de razão, um significante S1 a um outro significante S2".
É mesmo a partir deste saber que se coloca como invisível, assim como o trabalho do escravo que sabe, silenciosamente, o que quer o senhor, que podemos falar do inconsciente e colocar, a partir da experiência analítica, este saber na berlinda. 
Um parêntese para dizer uma palavra sobre a articulação que nos propõe Lacan em torno do Discurso do Universitário: podemos verificar que Lacan associa este discurso ao do capitalista, ao colocar o saber em lugar do agente e dizer que no lugar do Outro encontramos produtos de consumo que ali estão na esperança de substituir o escravo antigo, ou seja, na esperança de que eles possam traduzir o que deseja o senhor. 
Fecho os parênteses e retomo nosso trajeto de volta à clínica, para acompanhar o questionamento de Lacan em torno, agora, do ato analítico. 
O saber que não se sabe está, como já vimos, aqui representado pelo matema S2. Aqui vale a pena uma pequena digressão para diferenciar alguns pontos. É de nosso conhecimento que há um saber no Real. A presença deste saber o constatamos, por exemplo, no instinto animal ou, p.ex. na forma como os elementos do cromossomo se reúnem a partir do código genético. A ciência procura se ocupar, exatamente, disto. Ela busca descobrir o saber que está no Real. A psicanálise, em contra-partida, nos diz que há um Real no saber. Um Real que diz que o saber não dá conta de tudo. É deste Real no saber que a psicanálise vai se ocupar deste Freud. Em outras palavras, a entrada do significante produz saber, mas também deixa um resto não traduzido em significantes que diz que a relação sexual não existe. 
O Discurso do Analista, que não deve ser confundido com a fala do analisante, aquela que se sustenta na associação livre de idéias e vai nos propiciar uma estrutura onde se poderá articular o saber ao Real.  Esta articulação é que vai permitir ao sujeito uma produção que o coloque condições de responsabilizar-se por seu destino. Isto só é possível porque o Discurso do Analista produz uma virada, um quarto de volta ao histericizar o discurso do analisante. O Discurso da Histérica é passagem obrigatória no trajeto de uma análise. Isto porque o Discurso da Histérica "fabrica, como pode, um homem que estaria animado pelo desejo de saber". 
Como pode este desejo de saber advir? Pela estrutura do Discurso do Mestre o desejo nunca advém ao senhor, pois, o escravo está ali, exatamente, para que ele não deseje, já que este desejo ele o preenche antes mesmo que ele possa surgir. Será, portanto, da posição de sujeito dividido $ que agencia o Discurso da Histérica que vai ser possível endereçar uma pergunta a um Outro na espera de poder fazer existir um desejo de saber. E o $, o sujeito na posição de agente, quer que saibamos: “é que a linguagem escorrega sobre a amplitude do que ela pode abrir, como mulher, sobre o gozo. Mas isto não é o que importa à histérica. O que lhe importa é que o outro, que se chama homem, saiba qual objeto precioso ela se torna neste contexto de discurso.”
Para obter isso ela se coloca a falar, extrapolando os limites das quatro paredes que a cerceiam para tentar tudo dizer. Mas, o que se obtém é uma produção de significantes que não se relacionam a este saber que não se sabe, que é o que realmente interessa. Este é o momento em que o analista deve tomar a palavra para interromper esta série abundante de S1 que ela produz no campo do Outro. Fazendo-se senhor em seu discurso enquanto causa de desejo, o analista pode fazer trabalhar o saber de seu lado, a partir do fato de que ele escuta seu paciente. Este saber é que será utilizado na construção de um espaço onde ele possa funcionar como verdade.

Mas o que é a verdade como saber?, ou, dito de outra forma, como saber sem saber? Lacan nos diz que é o enigma que nos propõe o Discurso do Analista, pois a verdade, este lugar onde o saber vai ser construído, só a podemos dizer pela metade. Partindo desta afirmação, a construção que o analista faz e que comunica a seu paciente como interpretação pode ser definido como sendo "um saber enquanto verdade". A interpretação, que Lacan propõe situarmos entre enigma e citação, vai acontecer apenas quando colocada entre os dois significantes que estão sob a barra no Discurso do Analista: o S1, o enigma que se produz quando se está diante do Semblante do Real que é a presença do objeto “a”, e a citação, que é o saber que está colocado no lugar da verdade e que pode sustentar este semblante de Real como agente.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Sobre a estrutura dos discursos (III)

Lacan, em seu texto Radiofonia, nos propõe tomarmos como base para justificar cada um dos discursos - como eles se articulam e como cada um se constituiu a partir de sua relação com um outro - a interdependência entre eles:




Os discursos estão ordenados pela presença do Real que foi introduzido a partir do Discurso Analítico inventado por Freud. Este Real limita o número dos discursos em quatro, ao estabelecer uma revolução não permutativa da posição dos quatro termos e deixando-se entrever pelo ponto onde algo não passa entre a produção e a verdade: este ponto onde se colocam duas barras onde deveria existir uma seta.
Penso ser importante salientar aqui esta disjunção entre produção e verdade. Ponto onde a sincronia se rompe sempre entre elementos diferentes, pois, sendo fixa (entre dois lugares), deixa a permutação por conta dos elementos que ocupam estes lugares. Isto é constatado pela própria estrutura e a sequência das flechas. Neste ponto Lacan vai escrever “impotência” que se define pela barreira do gozo, ou seja, o que está posto, deste o primeiro Lacan, desta forma: a verdade não passa à palavra  Por isso, a verdade, apesar de ser parente do gozo (Lacan a denomina irmã), ela guarda, em relação a este, uma diferença fundamental. Diferença esta que JAMiller destaca como sendo aquela entre o Semblante e o Real. A verdade, como tal, é um semblante. Por isso a definimos, com Lacan, como sendo o que só pode ser apreendido entre linhas, e que, por isso mesmo, só a temos como meio dizer. Ela está articulada à linguagem e encontra na formulação dos discursos um lugar, mas ela não se articula à palavra. Lacan nos diz desta impossibilidade ao escrever seu matema S(A/). O gozo, por outro lado, se apresenta colocado nos discursos como este resto da operação significante, este resto que diz que nem tudo pode ser posto em significantes. Isto que escapa ao significante e que permanece como resto do Real preso nas malhas do discurso. O objeto pequeno “a” que aí está para nos dizer disto é a escritura que foi construída por Lacan para dar conta desta presença. Mas o objeto “a” não é o Real. Ele é semblante e é assim que ele nos diz do Real que está alhures. Podemos articular o objeto “a” no nó borromeo onde as três categorias tem o mesmo peso: 





No Discurso do Mestre o que vai se destacar é a presença do mais de gozar, deste Semblante de Real, que só satisfaz o sujeito ao sustentar a realidade unicamente pela fantasia. 
  


Já no Discurso do Universitário, o que se observa é a brecha em que é tragado o sujeito que ele produz. Este sujeito como produto acontece por ter que se supor um autor ao saber, ali onde a verdade não pode ser dita. Como consequência o ponto de Real fica deslocado para o Outro e assujeitado à ação do saber.




A proposta de Lacan, a partir dos esquemas que estão acima é dizer do que acontece quando este ponto de Real produz uma dinâmica em progresso para o pior sobre o discurso que o precede em certo sentido rotatório. Este pior, pode ser compreendido a partir da afirmativa que o Discurso do Analista coloca como agente o “que perdura de pura perda” (a/-φ) e “que só aposta do pai ao pior”, como afirma Lacan na frase final de ‘Televisão”.



O Discurso do Mestre vai encontrar sua razão se articulado ao Discurso da Histérica, por regressão do movimento das flechas, posto que, ao se fazer onipotente, o Mestre renuncia a responder como homem ao que lhe é demandado, permitindo à  histérica obter apenas saber. Saber que ele busca no escravo que produz o mais-de-gozar, pois o Mestre não consegue fazer da mulher causa de seu desejo. Em outras palavras, ele só consegue sustentar sua relação à mulher como objeto.
Já o Discurso do Analista, por estar em progressão em relação ao Discurso Universitário, pode circunscrever o Real que sua impossibilidade demonstra, por supor que o sujeito queira questionar o mais-de-gozar que o trouxe à análise. Isto é possível quando já se tem, na transferência, uma suposição de saber que sustenta sua verdade. Esta posição é o que propicia a passagem do sujeito ao significante mestre que lhe sujeitava.
O que está em jogo, afinal de contas, é o saber da estrutura, que, no Discurso do Analista, ocupa o lugar da verdade.