Total de visualizações de página

terça-feira, 30 de junho de 2015

De onde os Analistas: Do Umbigo do Sonho (III)

O sintoma, assim como a cena da fantasia fundamental, nada mais são do que envelopes da pulsão, modalidades de seu exercício, formas que o sujeito busca para apreender um objeto, no campo do Outro, que lhe sirva de parceiro.
Este objeto, que Lacan denominou "pequeno a", se define a partir dos orifícios do corpo e marca o ponto por onde o sentido não se deixa apreender nas malhas do discurso. É este objeto pequeno a que apresenta o vazio em torno do qual a pulsão faz seu circuito desenhando uma escritura que situa a repetição do sintoma.
A busca da satisfação do sintoma passa pela conquista de ideais determinados pela demanda do Outro que, na impossibilidade de serem atendidas, deixam sempre um resto que se repete na presença de um olhar, de uma voz, enfim da marca de uma falta. Essa marca se busca como único sinal da existência de um Outro que possa ser inscrito na possibilidade da relação sexual.
Lacan nos diz que "O Outro é uma matriz com duas entradas". O objeto pequeno a constitui uma destas entradas. E a outra é o Um do significante. Dissolver a presença deste Outro é fundamental para o sujeito se livrar das diretrizes que determinam a fixação do circuito pulsional.
O sintoma, por comportar um efeito de sentido, sofre a ação da interpretação. O seu valor de gozo, no entanto, é antinômico ao sentido, só se deixando apreender pelo equívoco, de onde se deduz a função da letra. A redução do sintoma à letra é uma forma de renovar o estatuto do simbólico, resumindo a pulsão à função de furo.
Por isso, a interpretação do analista pode apontar o vazio e, assim, esclarecer o circuito que delimita o objeto velado pela interpretação que o inconsciente fez do encontro traumático com o Outro sexo.
Este objeto, desde o congelamento do sentido na cena da fantasia, passa a ser incrustado em todos aqueles que apresentam um traço que repete a cena fundamental, nos dizendo de um ponto de fixação pulsional. Ora, a pulsão é a força real da fantasia ao mesmo tempo em que denuncia o limite do sintoma à ação do simbólico. O resto que escapa, foge, retorna sob a forma de mal estar e relança o vetor pulsional sempre na direção determinada pelo imperativo do supereu. Desfazer este circuito devolvendo ao objeto sua característica de ser qualquer um, mobilizando o seu valor de gozo, é um dos objetivos de uma análise.
Neste objetivo, a estratégia da qual se utiliza a psicanálise consiste em oferecer, àquele que a busca como solução, a possibilidade de que esta cena se repita na transferência, ao instalar, no ponto de não saber, um sujeito suposto saber da significação de seu sofrimento. Esta estratégia utiliza o fato de que a existência do inconsciente se sustenta da inexistência da relação sexual, sendo a realidade sexual representada no inconsciente pela pulsão. Utilizando-se do objeto pequeno a, enquanto agalma, pode-se ter entrada ao Outro, fazendo possível a construção desta cena fundamental, a partir mesmo da determinação de uma constante - correlato ao umbigo do sonho - através da qual o sujeito se relaciona ao real do gozo. Balizada por esta construção, uma interpretação pode operar separando S1 de S2 e criando um intervalo onde reina a opacidade própria do gozo do sintoma. Este é o momento em que acontece a produção de um significante que indexa a falta, um nome que pode estabelecer novos rumos, fazendo desaparecer os pontos de suspensão sintomática e fazendo intervir a letra como borda ao real.
O amor, resposta ao real da não relação sexual, que sustenta o trabalho da transferência nesta relação ao Outro do saber, se esvazia pela ação da interpretação que desfaz o mistério da diferença sexual. Este é o momento em que o "analisante fez do objeto a o representante da representação de seu analista", abrindo uma nova relação ao saber e ao consentimento com seu modo próprio de gozo. 
Esta passagem estabelece uma subversão do sintoma que, a partir de então, passa a se sustentar na alienação, não mais a um Outro do saber, um Outro sem barra, como define Lacan, mas sim ao Outro barrado, marcado pelo silêncio da pulsão. Podemos dizer que acontece uma extração do objeto a, como causa de desejo, a partir do gozo que sustentava o sintoma. Como consequência, o sujeito, por querer o que deseja, pode assumir uma responsabilidade onde antes se esperava uma garantia. Responsabilidade que se verifica como a única posição política possível. Responsabilidade definida, por J-A. Miller da seguinte forma: "Se tudo fosse calculado, então não teríamos mais responsabilidade. Há uma responsabilidade, justamente, porque há um furo e é necessário cobri-lo pelo ato, decidindo-se em função de seu julgamento íntimo"
Onde havia o trabalho de transferência, portanto, acontece a transferência de trabalho, dizendo de uma nova aliança com a pulsão. Esta nova aliança só pode acontecer pela revitalização da marca que introduziu o sujeito na linguagem, a marca do ser-falante, propiciando um "saber aí fazer com o sintoma". "Saber aí fazer com o sintoma" se constitui numa das fórmulas possíveis da liberdade. "O 'aí' marca a suspensão de um ser que vai nomear o saber ou o fazer. É um ser que nomeia o 'aí' como o que vai para além de seu nome próprio, um nome para além da imagem de seu nome próprio. [...] É exatamente do nome próprio que nos fala Lacan a partir da fórmula saber aí fazer com seu sintoma".
O final de uma análise leva o sujeito a abandonar, exatamente, a crença de que um significante possa sustentá-lo enquanto ser. Esta destituição subjetiva leva ao fim a crença em uma prevalência do Nome-do-Pai. Sabemos que Lacan adotou esta expressão, Nome-do-pai como uma forma de afirmar o ponto de estofo, uma espécie de garantia do grande Outro. Sabemos também que ele não se fixou a esta teorização, pois, ao construir mais tarde o matema S(A barrado) para nos dizer que o Outro não existe, ele "confirmava o que estava previsto na pluralização dos Nomes-do-Pai." Este declínio do “reino do Nome-do-Pai”, coincidente com a inexistência do Outro, nos leva a abandonar, nos diz Célio Garcia, "a idéia do um e do múltiplo, de Deus Pai e suas criaturas para entrarmos numa era multipolar". 
A interpretação analítica que visa, exatamente, este ponto onde não existe um Outro que possa responder, vai permitir ao sujeito referenciar seu ser que faz objeção ao saber. Uma nova relação a um Outro, barrado, pode ser estabelecida, como consequência. 
Esta passagem poderá ser mostrada no Grafo do Desejo, deslocando o que acontece no andar inferior, no eixo s(A) - (A), para o andar superior onde se encontra o S(A barrado), ponto onde a falta de garantia se apresenta apontando ao sujeito a responsabilidade como única possibilidade.
Poderíamos dizer, com J-A Miller, que neste momento haveria uma alienação ao Outro barrado, o que permitiria uma nova aliança com a pulsão, na medida que a travessia da fantasia, ao separar $ de a, extrai o objeto causa do gozo, dando lugar a "uma autoridade autêntica, que depende do foro íntimo de cada um”, aquela que nasce de um encontro muito especial: o encontro com esse ponto que Freud denominou de umbigo do sonho e que Lacan matemizou por S(A barrado).

É deste ponto que pode vir um analista. e vêem

terça-feira, 23 de junho de 2015

De Onde Vêm os Analistas? Do umbigo do sonho (II)

O Passe
Pois bem! Quando falamos de Passe o que estamos objetivando é poder isolar aquilo que é do discurso analítico e que poderia, segundo Lacan, tornar-se mais de acordo com o que deveria ser um verdadeiro recrutamento para a Escola. Ao lado disso, ele deve ser um dispositivo que possa investigar o que permite a alguém pensar que pode ocupar o lugar do analista. Para isso convida-se alguém, que está perto de se autorizar, se é que já não o fez, a comunicar o que o fez decidir-se, o que o fez autorizar-se e, assim, engajar-se num discurso do qual não é nada fácil tornar-se o suporte.
Em sua "Proposição sobre o Psicanalista da Escola", Lacan nos lembra que "existe um Real em jogo na própria formação do psicanalista" e que este real provoca seu próprio desconhecimento, e até mesmo produz sua negação sistemática. Por isso, com o procedimento do Passe, Lacan convida aqueles que possam "testemunhar dos problemas cruciais nos pontos vivos em que se encontram para a análise, especialmente na medida em que eles mesmos estão na tarefa ou pelo menos na via de resolvê-los", com o intuito de iluminar a sombra espessa que recobre essa passagem.
A experiência do Passe tem se mostrado, ao longo de toda a sua existência, uma experiência absolutamente incomum. O que aí se testemunha é a produção de um saber novo que possa dar conta deste ponto de opacidade que sempre produz um sujeito como resposta, quanto se trata de um ser falante. Um clarão, um relâmpago sobre este ponto de opacidade muito bem representado pelo umbigo do sonho.
Isso se esclarece um pouco mais se relembrarmos aqui a frase de Heráclito que Lacan utiliza em seu texto "Sobre o passe": “ta panta oiakizei kerauno”, cuja tradução possível seria: “só o relâmpago faz isto: por um instante num clarão, o universo”. Na língua grega, ta panta, que na proposta acima está traduzido por universo, deveria se traduzir por alguma coisa como “os todos”, mas os todos enquanto diverso, assim como “um monte de todos”.
O que nos interessa no Passe é saber como um sujeito pode se desvencilhar das amarras que o impediam de saber do real que está em jogo na formação do analista e como ele pode se orientar na linguagem. Ou seja, como ele se relaciona ao inconsciente, mais precisamente a esse ponto, essa marca que Freud concebeu como o umbigo do sonho, esse amontoado que muito bem pode ser correlacionado ao "ta panta”, esse “os todos”, mas os todos enquanto diverso, assim como “um monte de todos” e que, no inconsciente é designado como um buraco, um furo, algo não-reconhecido, Unerkannte.

Uma nova aliança
Em seu primeiro encontro com o Outro, consequência da incidência de um significante, o sujeito tem de se haver com um real que não se subjetiva. Ponto de opacidade, nos diz Lacan, ponto de silêncio que indica o lugar onde poderá se edificar a determinação significante capaz de escrever o fenômeno sintomático, na esperança de se dar conta da impossibilidade que se instala na contingência deste primeiro encontro. O sintoma é o que vai representar, manifestar, significar a verdade deste encontro. Verdade que nos diz do real do gozo que é produzido pela inclusão do significante traumático no sujeito.
Desta forma, o sintoma poderá ser tomado em duas vertentes: por um lado temos o sintoma como metáfora, na medida em que faz valer um significante do traumatismo, um significante que vai funcionar como um índex da memória do que foi encontrado como traumático. O sintoma como metáfora é um sintoma significante que está conectado ao gozo, sem sê-lo. Por outro lado, se seguirmos o desenvolvimento da teorização de Lacan, vamos tratar o sintoma como função da letra, como signo do Unerkannt. É fundamental distinguirmos, aqui, a letra do significante, pois esta se relaciona diretamente ao gozo, enquanto o significante está referido ao sentido gozado (jouis-sens). Enquanto letra pode-se definir o sintoma como um "memorial de gozo" e, enquanto significante, como "cativador de gozo".
Seja qual for a vertente, temos no sintoma o sinal de que alguma coisa não anda, pois há um real que se coloca como uma pedra no caminho do sujeito: o real da privação que se explicita no fato de que homens e mulheres, desde sempre, estão privados do elemento que poderia propiciar a escritura da relação sexual.
Esta impossibilidade, marcada pelo Unerkannt, que não cessa de se escrever, promove o sintoma como única possibilidade de se fazer laço, ao mesmo tempo que se permite uma leitura, uma vez que ele participa de uma escritura, função da letra. Por isso J-A. Miller, em seu curso "O Outro que não existe..." , nos diz que "o sintoma é uma mentira sobre o real [...] especialmente uma mentira sobre o real da inexistência da relação sexual [...] É bem por isso que Lacan pode dizer que é o sintoma o que nós colocamos no lugar deste Outro que não existe. E, especialmente, é o sintoma que nós colocamos no lugar do outro sexo [...] talvez o único Outro que existe, seja o sintoma."

Há, portanto, um vazio sobre o qual o sintoma se apóia e vai construir seu envelope formal. Vazio que se instala no ponto mesmo em que a presença de um gozo singular, escandaloso, foi recusado e recalcado pelo sujeito. Isto que é recalcado, Freud definiu como sendo o orifício da pulsão que se apresenta com seu caráter intratável, rebelde e refratário ao laço social. No entanto, este mecanismo falha e o sintoma vai surgir como uma forma de inscrever o que insiste como marcas da singularidade do sujeito e de suas fixações.

segunda-feira, 15 de junho de 2015

De onde vêm os analistas? Do umbigo do sonho! (I)

O umbigo do sonho
Diante da questão apresentada como tema: "de onde vêm os analistas?", ocorre-me uma resposta simples: do umbigo do sonho!
Esta solução surgiu enquanto trabalhava um texto de Lacan, mais exatamente uma "Resposta" que ele apresentou à questão de Marcel Ritter, por ocasião de sua intervenção em Strasbourg no dia 26 janeiro de 1975. A questão visava algumas palavras que, em alemão, começam por Un: Unbewuste, Unheimlich e Unerkannte. Esta última, que encontramos no texto sobre "A interpretação dos Sonhos", de Freud, é, de acordo com Marcel Ritter, muito mal traduzida por desconhecido, sendo sua melhor tradução não-reconhecido. Esta palavra, Unerkannte, vamos encontra-la articulada à questão do "umbigo do sonho": "O umbigo do sonho é esse ponto onde o sonho é insondável, quer dizer, ponto onde se interrompe o sentido ou toda a possibilidade de sentido". Freud, nesta passagem, afirma que esse ponto do sonho é o mais próximo do Unerkannte, do não-reconhecido. É como se o sujeito estivesse assentado sobre algo, assim como o cavaleiro está sobre o cavalo. É um ponto constituído por uma massa de pensamentos que nunca chegamos a desmanchar, mas que mantém um único ponto de ligação com o restante do conteúdo do sonho: um ponto de falha na malha que o constitui.
Sem dúvidas, poderemos ver, neste ponto, a presença de um ponto de real, não simbolizado e que se coloca como opaco, demonstrando a existência de um ponto fora do sentido.
É, exatamente neste ponto de real, neste ponto onde o sentido desaparece, ou melhor, onde o sujeito não pode ser reconhecido, que vamos encontrar um ponto de passagem, um novo espaço onde um analisante se torna analista. É neste ponto de falha na malha constitutiva do sonho, correlato ao ponto em torno do qual se constitui a fantasia fundamental do sujeito, que vamos ver nascer um novo saber que recoloca esse sujeito diante do real que o constitui como resposta.
Trabalhando sobre "A Transmissão", Lacan nos apresenta a seguinte resposta à questão:
"o que é que faz com que alguém, depois de se ter sido analisado, tornar-se analista?"
“[...] é por isso que fiz minha Proposição, aquela que instaura o que se chama ‘o passe’, no qual eu confio. Isto é algo que chamaria transmissão, se houvesse transmissão da psicanálise”.
Tal como hoje penso, a psicanálise é intransmissível.
É muito tedioso. É muito tedioso que cada psicanalista seja forçado - pois é preciso que ele, aí, seja forçado - a reinventar a psicanálise.
É por isso que é preciso que cada analista reinvente, após o que ele conseguiu retirar do fato de ter sido por um tempo psicanalisante, que cada analista reinvente a maneira como a psicanálise pode durar".
Ora, é certamente, esse movimento de reinvenção que pode estabelecer uma subversão da relação do sujeito ao Outro promovendo uma mudança na topologia que o sustentava até então: "depois da distinção do sujeito em relação ao objeto a, a experiência da fantasia fundamental se torna a pulsão" .
Esta falha, este ponto onde a condensação não se abre ao sentido, nos possibilita pensar que existe um real pulsional que se reduz à função do furo, do buraco, pelo simples fato de que a pulsão está ligada aos orifícios corporais. Freud sempre fez referência a isso e, certamente, esta constância é, por si só, um elemento de real.
Podemos, com Lacan, distinguir o que se passa ao nível do orifício corporal e o que vai funcionar no inconsciente. Nesta linha, vamos ver aparecer ali, onde Freud emprega o termo Unerkannt, como umbigo do sonho, um outro termo que poderá ser esclarecedor: Urverdrängt - o recalque originário. Ora, sabemos que é o destino do recalque original, o que não pode ser dito, que está na base, na raiz da linguagem. Freud nos lembra, em seu texto: "Projeto para uma psicologia científica", que isto que permanece como Coisa (das Ding), não se traduzindo em palavras, resistindo ao sentido, é o principal responsável pela ação do pensamento. Esta mesma articulação ele vai utilizar quando define a pulsão como "uma força constante [que] do ponto de vista biológico nos aparecerá como sendo um conceito situado na fronteira entre o mental e o somático, como o representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a mente como uma medida da exigência feita à mente no sentido de trabalhar em consequência de sua ligação com o corpo”.
Seguindo Lacan, verificamos que esse Urverdrängt, esse recalque originário constitui-se no furo, no buraco, nisso que, de alguma forma está no limite da análise e que tem alguma coisa a ver com o real. Por isso Freud ressalta a função do umbigo do sonho. Este ponto no qual o sujeito se encontra suspenso ao Outro materno por um fio que se liga, não à mãe, mas ao que vai se perder no nascimento (numa analogia à placenta, que é esse objeto que se instala entre a criança e a mãe).
Ora, é pelo simples fato de ter nascido, como nos diz Lacan, deste ventre, e não de outro qualquer, tendo sido ou não desejado, que o ser falante (parlêtre - que é também outra definição de inconsciente), "se encontra excluído de sua própria origem, e a audácia de Freud nesta ocasião é simplesmente de dizer que temos essa marca no próprio sonho". As formações do sonho conservam, em algum lugar, a marca de um ponto onde não há nada a fazer. É deste ponto que sai o fio que nos indica o caminho na medida em que ele permanece conservando-se no nível mesmo da simbolização. Esse ponto permanece como uma matriz simbólica ou como uma cicatriz no corpo que é capaz de se enlaçar à função e ao campo da fala e da linguagem.

É nesse campo da fala e da linguagem que se pode reconhecer, digamos, o que permanece impossível a reconhecer - Unerkannte como Urverdrängt representando o que vem a ser o sentido do Un em alemão: uma impossibilidade, que não se pode nem escrever nem dizer. O Unbewusste, o que permanece impossível de se fazer consciente. Em outras palavras, o que não pára de não se escrever.

terça-feira, 9 de junho de 2015

A interpretação em Lacan (II)

Em 1964 Lacan vai dar  um passo a mais na sua teorização da interpretação ao dizer que “a interpretação é uma significação que não importa qual. Ela vem aqui no lugar do s (S/s) e reverte a relação que faz com que o significante  tenha por efeito, na linguagem, o significado. Ela tem por efeito fazer surgir um significante irredutível. (...) Por isso a interpretação não está aberta a todos os sentidos. Ela é uma interpretação significativa ...  e o que é essencial é que o sujeito veja, para além desta significação, a qual significante - sem sentido, irredutível, traumático - ele está, como sujeito, assujeitado”.
Em 1969, no seminário sobre o Avesso da psicanálise, Lacan vai dizer que a interpretação, sendo “um saber enquanto verdade” se situa entre enigma e citação, onde o enigma é a presença de uma enunciação que não é de ninguém e que não vai corresponder a nenhum enunciado de saber. Seria uma verdade sem saber. Quanto à citação, ela é mais um enunciado de saber que se sustenta num saber afirmado, com nome de autor, etc. Desta forma ela vai introduzir a dimensão de uma enunciação latente, que ela mesma faz vir à luz.
Finalmente, em L´Étourdit, a interpretação vai ser ins­crita pelo viés do equívoco, ao nível da homofonia onde a ambiguidade homofônica torna possível o que a ortografia impossibilita. É nesta passagem que Lacan vai mencionar que a interpretação joga com o “cristal” lingüístico, com as dispersões das significações. 
Do lado da gramática, também se referindo ao L’Etourdit,   lembro-lhes a intervenção mínima: “eu não te faço dizer”, que deixa a própria ambiguidade agir: aquele que ouve não saberá se o que se diz é um “eu disse”, ou um “eu não te soprei”, já que os dois foram ditos.
Finalmente, no plano da lógica vamos ver agir aquilo sem o qual a interpretação será imbecil. Um exemplo pode ser dado com a formalização freudiana de que o inconsciente é insensível à contradição.

No dia seguinte à minha interpretação, Tereza retorna,  deita-se no divã e diz: “não entendi nada do que aconteceu ontem. Não vá me dizer que aquela estória de ‘matar a ré’ tem a ver com a morte de meu pai...”.
Algo operou pois, no “só depois”, foi possível dar conta de que houve uma mudança subjetiva. Todas as intervenções anteriores, mesmo que tenham feito alusões, direta ou indiretamente, a esta passagem de sua vida, nunca haviam sido escutadas.  Foi necessário um corte para fazer surgir o sujeito das significações pré-estabelecidas na demanda do Outro.
Pode-se formalizar o que se passou naquele momento, utilizando o grafo do desejo e a topologia das bandas.
Em primeiro lugar, vamos esclarecer que não há interpretação sem transferência. A ordenação que Lacan apresenta na “Direção do Tratamento...” deixa isto muito claro: “retificação subjetiva ... transferência... interpretação...”
A claudicação do saber, da certeza do sintoma, quando Tereza se viu ameaçada pela falta financeira, abriu um espaço para que um endereçamento pudesse ser feito a um Outro lugar, na esperança de que o estranho pudesse ser decifrado. Sim, decifrado, por que o sintoma, sendo a primeira mensagem cifrada, plena de sentido, traz em si o ciframento do gozo, que se apresenta como um ponto sem sentido, como um estranho, como um x no caminho do sujeito. Este é o momento em que se instala, no ponto de inconsistência do Outro, um Sujeito a quem se supõe um saber sobre o que seria a sua verdade. Para que isto pudesse acontecer, uma escolha, forçada sem dúvida,  foi feita e um significante qualquer se alojou aí, onde o saber falhou, para ser, ele mesmo, integrante do sintoma. É a transferência que, agora, pode sustentar, estrategicamente, a direção do tratamento, enquanto signo de um amor que possibilitará um giro de quarto de volta no discurso. 
No entanto, para que as coisas pudessem continuar caminhando em função da política do tratamento, foi fundamental que este lugar, primeiramente imaginário, fosse “cadaverizado”, para usar uma expressão de Lacan em “A coisa freudiana”, e que fosse anulada a própria resistência do analista, o que equivale dizer que ele não vai simplesmente matraquear a significação que o paciente tenta fazer valer nas suas proposições.
Tomando o Grafo do Desejo e colocando a claudicação do sintoma em s(A) faremos do vetor que daí parte um endereçamento ao (A), enquanto lugar. Se a posição do analista não é “cadaverizada”, deixando-se levar pelo sentido que lhe é proposto, ele vai exaltar o Sq, o traço que lhe foi atribuído, favorecendo a instalação da identificação e esvaziando sua palavra num discurso do convencimento que só vai se prestar a abrir caminho para a circulação no chamado andar inferior:          s(A) ----- (A) ----- i(a) ----- (m). Podemos também dizer do que se passa neste nível, utilizando a topologia da banda circular, com suas duas bordas e suas duas faces, para mostrar que aí vai existir dois sujeitos em questão e, portanto dois sentidos sem que nenhum, nunca, possa intervir sobre o outro.   
Mas, como nos lembra Lacan desde o seu Discurso de Roma, a interpretação por alusão é uma forma de se evitar este confronto narcísico próprio de um debate sustentado no eixo    a ---- a’. A interpretação deverá, assim como o dedo de São João, apontar para o vazio entre dois significantes. No entanto, é fundamental lembrarmos, com Lacan, que “a interpretação não está aberta a todos os sentidos”. Apesar de ser uma interpretação significativa, o “essencial é que o sujeito vise, para além da significação, a qual significante - sem sentido, irredutível, traumático - ele está, como sujeito, assujeitado.”
Quando Tereza, enunciou o verbo arrematar, a escanção feita desarticulou o binário S1- S2 e abriu um buraco no sentido até então estabelecido, ou melhor até então restabelecido pelo sintoma analítico.  Foi o “dizer” do analista que produziu seus efeitos sobre os “ditos” de Tereza. Dizer que se sustenta na “estrutura da letra que, na medida em que é idêntica a ela mesma, é um significante fora do simbólico, realizado”. Por isso é um dizer sem sujeito, que pode produzir um vazio a partir do deslocamento da letra, criando um estado de desamparo (hilflösigkeit)  e, não deixando a analisante outra saída senão bem-dizer. 
Deslocando-se, assim, do eixo do enunciado para o da enunciação, Tereza pode se deparar com a verdade que circula entre o gozo e a castração e se elabora como uma relação do sujeito à pulsão. É aí, nesse nível, que o sujeito poderá saber da causa de seu desejo pois,  pela via da fantasia, esta causa está dissimulada pelos benefícios secundários.
Esta é a possibilidade de fazer com que a “experiência da fantasia  se torne a pulsão”.
Quanto à topologia das superfícies, o silêncio do analista em ‘A’ fez com que a demanda que lhe era dirigida sofresse uma meia torção, criando uma banda de Möebius e, retornando ao sujeito pela via do desejo indo de ($<> D)  a S(A/) atravessa ($<>a) para se encontrar, um novo sujeito em s(A).  Esta é a maneira de dizer que só há um sujeito em questão na análise, o analisando, e que é somente a partir de um ponto fora da linha que se torna possível sustentar o corte de uma linha sem pontos.  


      

terça-feira, 2 de junho de 2015

A Interpretação em Lacan (i)

          Várias são as possibilidades de se abordar tema tão extenso. Escolho a clínica como ponto de partida para, em seguida, tentar formalizar alguns aspectos da interpretação. 
Tereza procura análise trazendo, na sua bagagem um ponto de certeza: “Eu não consigo concluir nada que começo”. Sua vida tem se estruturado em torno deste ponto: são cursos interrompidos, relações afetivas mal resolvidas, dívidas financeiras e, - a razão última de sua demanda de tratamento - uma tese universitária que já se prolonga por anos, colocando em risco sua sobrevivência profissional. 
Lacan, em seu Seminário XI vai nos dizer que, se por um lado os pacientes se satisfazem com o seu sintoma, é por isso mesmo que eles, aí, se dão muito mal. È, exatamente, este muito mal (ou um “mal-a-mais”, se preferirem traduzir assim o “trop de mal” do texto) que vai autorizar nossa intervenção, como analistas, para que uma retificação possa ser feita ao nível da pulsão.
Assim, autorizado pelo movimento feito por Tereza ao buscar um lugar onde endereçar o seu sintoma para que ele pudesse ser decifrado, foi possível ir construindo sua história: fruto de um amor proibido, Tereza, aos dois anos de idade,  teve seu pai assassinado por seu avô materno, como conseqüência deste não respeitar suas ordens para não mais se encontrar com a mãe de Tereza. Como consequência, ela ficou sem o pai e sem o avô que, até então, desempenhava as funções paternas, pois este passou vários anos na cadeia. 
A partir daí, sua história veio sendo constituída por pontos inconclusos. Estes pontos eram repetidos, insistentemente, a cada sessão, mas com uma particularidade para a qual logo me alertei: a cada vez que ela os repetia,  eram usados significantes diferentes: “Eu não consigo terminar...”, “Eu não consigo concluir...”, “Eu não consigo encerrar...”, até que um dia, tendo chegado  bastante angustiada, deitou-se no divã e exclamou: “Não adianta! Eu não consigo arrematar nada!”. Era a primeira vez que ela utilizava este significante .  Antes que ela pudesse dizer mais alguma coisa eu fiz uma intervenção dizendo: “Como? Não consegue a-ré-matar?”
Quando Lacan, em 1953 com o texto “Função e Campo da Fala e da Linguagem”, resgata para a psicanálise o poder da palavra, redesenhando a função do simbólico diante do enlouquecimento imaginário dos autores pós-freudianos, deu-se o início de um longo caminho: repensar a interpretação analítica, tanto no que diz respeito à sua forma, sua eficácia, como, também, à função do analista.
Num primeiro momento, que podemos definir com J.A.Miller de fase “hegeliana”, se opunham palavra plena e palavra vazia. O que sustentava a interpretação, nesta época, era a possibilidade de um encontro com uma “verdade feita de completude”. A partir desta idéia acreditava-se que as lacunas da história de um sujeito pudessem ser preenchidas e este sujeito seria, então, “incluído no seio da razão universal”
A palavra plena era colocada como aquela que “constitui o sujeito na sua verdade” em oposição à palavra vazia, onde o sujeito “se perde no discurso da convicção, em razão das miragens narcísicas que dominam a relação ao outro de seu eu”. Neste contexto ficou estabelecido que era na medida em que o analista fazia calar nele o discurso intermediário para se abrir à cadeia das palavras verdadeiras, que ele poderia, aí, colocar sua interpretação reveladora”.
A partir da própria clínica, no entanto, esta construção “hegeliana” vai sofrer um corte. Será no texto “A instância da letra...”, que a primeira concepção de  “interpretação reconcilia­dora” vai ser substituída pela “concepção de um sujeito definido não pela fala, mas pelo escrito: entre metonímia e metáfora se constitui um sujeito estritamente determinado pela sua relação à escritura ... e reduzido a um vazio, a um corte fundamental”. Este passo foi importantíssimo para que se abrisse um espaço às elaborações futuras da interpretação, na medida que, “como técnica do escrito, ... reenvia a operações que são compatíveis com o silêncio”.
Num texto contemporâneo a este, e que pode ser considerado o texto sobre a interpretação: “ A direção da tratamento...”, Lacan vai introduzir um a mais quando se trata da interpretação. Esta não se resumirá  mais  “apenas ao preenchimento de lacunas produzidas pelo recalque mas, para decifrar a diacronia das repetições inconscientes, (a interpretação) deverá introduzir na sincronia dos significantes que aí se compõem, alguma coisa que, de súbito, tornará a tradução possível”.

Do que se trata portanto é de possibilitar a tradução de algo que, pelo mecanismo do recalque, permanece como um  estranho à sequência significante e que, devido a estar envolvido pela vestimenta significante, se infiltra e se alimenta do sentido que desliza sob esta cadeia de tal forma que só vão existir duas possibilidades para este estranho: ou vai se proliferar indefinidamente, ou vai reinventar, a cada instante, uma nova aparição. A possibilidade desta tradução só vai existir se a interpretação do analista se ativer à condição de que  ela “não faz senão recobrir o fato de que o inconsciente já procedeu, nas suas formações - sonhos, lapsos, chistes ou mesmo o sintoma - à suas interpretações.” É a função do Outro que aí se apresenta enquanto receptáculo do código. Sendo a propósito dele que podemos detectar o elemento faltante,  o estranho.