Total de visualizações de página

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

“O Obsessivo e o véu” (II)

A demanda do paciente de Lacan está, sem dúvidas, ligada aos reiterados pedidos de que ele fosse reconhecido por sua “homossexualidade recalcada”. Sabemos que durante muito tempo, a literatura psicanalítica demonstrou quanto os analistas se maravilharam com a descoberta da chamada homossexualidade inconsciente dos obsessivos e das histéricas. É isso que está aqui criticado e encaminhado de outra forma. O desejo do analista: não ceder no que diz respeito às demandas do paciente, às suas perguntas, é o caminho para se evitar que a alienação do sujeito se desdobre em determinada imagem de si mesmo. “Cada vez em que somos complacentes com a suposta homossexualidade inconsciente do sujeito, o empurramos em direção a uma identificação alienante com a outra mulher, no caso da histeria, com o outro homem, no caso da neurose obsessiva.”  
A companheira sonhadora não é complacente. Ela não aceita um outro homem, mas produz um sonho que, por sua vez, produz efeitos no paciente. São estes efeitos que ele vai analisar e não o sonho.
Poderíamos interpretar estes efeitos como um acting-out ou como a consequência de ter se tranquilizado com respeito à castração, ao encontrar um pênis em sua amante. Uma outra forma de interpretar este momento seria apelar para a presença da mãe castradora que, ali, apareceria como negada. Todas estas interpretações, apesar de tocarem pontos bem estabelecidos da teoria analítica, não estariam levando em conta o efeito do relato do sonho: o desencadeamento da ereção. Pode-se dizer que esta mulher estava muito bem orientada quanto à farsa da homossexualidade deste paciente e provoca sua ereção sem ter que lançar mão de um outro homem. Vamos dizer que ela sabia que a demanda do paciente tinha tudo a ver com a própria castração. Desta forma ela lhe diz que tem um pênis, mas que isso não a impede de desejar: por tê-lo pode dá-lo. E Lacan diz que “o desejo inconsciente é o desejo do Outro – uma vez que sonho é feito para satisfazer o desejo do paciente para-além de sua demanda, como é sugerido pelo fato de ele ter sucesso”. (Uma questão técnica se interpõe aqui: “Não é por não ser um sonho do paciente que ele tem menos valor para nós, se, por não se dirigir a nós, como acontece com o analisado, dirige-se tão bem a ele quanto o poderia fazer o analista” – ou seja, este sonho valeu como uma interpretação.)
Este episódio clínico é tomado aqui como uma boa “ocasião para fazer o paciente apreender a função de significante que o falo tem em seu desejo”. Em outras palavras, tomando o texto “A subversão do sujeito...”, vamos encontrar a passagem do falo de um extremo ao outro na fórmula da fantasia, do $ ao a. Isto é o que vemos acontecer nos dois sonhos que examinamos aqui: no sonho descrito por Freud, a amiga da histérica lhe passa o salmão-falo, enquanto que no sonho descrito por Lacan, é a amante que lhe passa o falo. Na verdade ela lhe cede o falo ao faze-lo surgir ali, fora de lugar, onde não deveria estar, fazendo-o signo: “Isso porque, para nosso paciente, de nada serve ter esse falo, que seu desejo é sê-lo. E o desejo da mulher, aqui, cede-o ao seu, mostrando-lhe o que ela não tem.”
Ao introduzir, através do sonho, o falo como signo da falta-a-ser, a amante pode dizer do desejo: “ter esse falo não fez com que o desejasse menos”. Com isso é a própria falta-a-ser do sujeito que é tocada. O obsessivo  se permite, ao designar o falo onde não está, deslizar em sua falta-a-ser. O véu do falicismo, quer dizer, do falo imaginário, é desdobrado incessantemente para mascarar a presença real, phi, que aparece no intervalo significante. Isso aparece nos relatos em que o paciente se queixa de que nunca está onde está, que se olha a si mesmo como representando a comédia humana, que não chega a existir plenamente, que está sempre desdobrado, acompanhado de seu duplo que trabalha por ele. Todas esta queixas apontam para uma existência sustentada no eixo imaginário. Por isso podemos dizer de sua dificuldade em inscrever-se no simbólico. Esta é a falta-a-ser essencial do obsessivo e, por isso, ele preserva o valor que ele atribui ao falo, preservando-se, assim, dos signos do desejo do Outro. De fato, o sujeito obsessivo se comporta como se no desejo do Outro ele escutasse uma demanda do Outro.
É deste lugar, da presença real, que se inscreve no intervalo significante, que é possível ao analista obter um descolamento do objeto da fantasia do sujeito. É preciso repetir aqui que só conseguiremos isto se não interpretarmos este falo imaginário, nem cedermos à demanda de falo que é feita. Se não respeitarmos isto vamos reforçar o impasse do desejo. O que a amante conseguiu, ao dar ao paciente a dimensão de sua falta-a-ser no lugar do falo é que seu desejo se conecte com o fato de que ele existe exatamente por “um não estar aí’. Ela pôde com seu relato recobrir os dois “não estar aí”, o do objeto e o do falo enquanto significante do desejo.
Por tudo isso verificamos “a importância de preservar o lugar do desejo na direção do tratamento”. Para tanto é preciso estarmos atento aos efeitos da demanda e da articulação do sujeito com sua fala enquanto mensagem que se produz no campo do Outro.
Proximamente, quando concluiremos nosso trajeto neste texto “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”, vou trabalhar a articulação da demanda com o desejo e do sintoma com a fantasia. É importante que o analista saiba disso para que possa produzir uma saída diferente da identificação. O fato da entrada em análise se dar pela redução do analista a um significante qualquer não implica que ele vá intervir a partir do poder que esta  atribuição lhe concede, mas o que está em jogo é o objeto como causa de desejo, um objeto sem substância fálica. “O analista deve saber que existe o significante fálico e que o gozo fálico varia segundo cada época. Deve também saber que pode se colocar sob o emblema fálico segundo os tempos em que vive. Em outras palavras o analista deve ser um letrado do falo, não um mandarim ou um universitário que crê no saber, mas sim alguém que sabe que a substância fálica não é nada mais que uma letra, um modo de dizer que não há relação sexual.”

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

“O Obsessivo e o véu”

Hoje vamos tratar do segundo caso clínico descrito nesta ultima divisão do texto "A direção do tratamento...". Trata-se, como já mencionamos, do único caso clínico citado da clínica do próprio Lacan. Este caso é tomado para exemplificar a função do significante falo como tal, “na busca do desejo, realmente é, como a situou Freud, a chave do que é preciso saber para terminar suas análises: e nenhum artifício suprirá o que falta para alcançar esse fim”.
A introdução que Lacan faz a esse caso pode ser alinhada com outras ocasiões quando ele nos fornece indicações do que poderia ser chamado de técnica analítica. Aqui ele diz que não devemos nos importar com as agressões imaginárias, tão freqüentes nas análises com obsessivos, mas sim faze-los “reconhecer o lugar que haviam assumido no jogo da destruição exercida por um de seus pais sobre o desejo do outro”. Só assim é possível desenhar a impotência em desejar sem destruir o Outro, destruindo também o seu próprio desejo. O que está em jogo aqui é o famoso aforismo: O desejo do homem é o desejo do Outro.
Este caso serve também, diz Lacan, para revelar a manobra da qual o obsessivo não se cansa que é “proteger o Outro” e que se transporta à transferência quando são utilizados todos os “artifícios de uma verbalização que distingue o outro do Outro (pequeno e grande) e que, do camarote reservado ao tédio do Outro, faz com que ele organize os jogos circenses entre os dois outros (o pequeno a e o Eu, sua sombra)”. A este propósito indico a leitura do livro de nosso colega Luiz Renato Gazolla, "As estratégias da neurose obsessiva", aonde vamos encontrar várias articulações em torno desta proposta de Lacan.
Continuando suas recomendações, Lacan vai lembrar que não podemos nos ater “aos cantos já bem explorados da neurose obsessiva”, mas sim buscar “a combinatória geral que lhes rege a variedade”, ou seja, buscar a estrutura que sustenta o desejo – a fantasia fundamental. Para além das fachadas buscar “captar as angústias ligadas aos desempenhos, os ressentimentos que não impedem as generosidades, as inconstâncias mentais que sustentam fidelidades inquebrantáveis”.
Em outras palavras, o assassinato do desejo é um conceito central em Lacan para definir o obsessivo. Existe, sem dúvidas, um falicismo patente que mascara o recalque do significante do falo. É com a demanda do falo imaginário que o sujeito se defende do desejo do Outro, do qual ele se empenha em destruir o signo. Através de uma atividade sustentada na fantasia, cheia de palavras, ele se esgota em preencher o buraco que poderia se revelar no intervalo significante. Isto podemos constatar no dia-a-dia da clínica e a partir daí ordenar uma série de fenômenos que ali se apresentam. Este método consiste, basicamente, em obedecer à demanda, preenchendo o vazio do desejo com objetos da “realidade”. Em outras palavras, o obsessivo preenche com a significação fálica o intervalo significante, pois ele não quer colocar nenhum real em jogo. Por isso a fórmula da fantasia do obsessivo se escreve assim: A<> (a,a’,a’’,a’’’...an) e se lê: o sujeito preenche a falta no Outro com a ajuda de objetos indexados pela marca do falo imaginário. Esta fórmula nos esclarece também porque o sujeito obsessivo deseja tanto a morte do Outro: ele simplesmente o quer sem desejo, mas como isso seria também a morte de seu próprio desejo, ele tudo faz para garantir a existência deste Outro e mostrar a ele toda sua “boa vontade”. Desta forma o obsessivo pode se acomodar em um sintoma que se apóia na soldadura significante. Ao contrário, ele só encontra o gozo pelo viés de um contrato com um Outro inteiro, do qual ele só se autoriza por um pagamento que se renova sem cessar.
Bem, mas retornando ao caso clínico, vamos perceber que o paciente chega a um ponto em sua análise em que a redistribuição da libido começa a produzir seus efeitos nos objetos de seu mundo. Sim, pois à medida que a análise avança, melhor vamos perceber que a fixação pulsional, própria da estrutura da fantasia fundamental, vai cedendo lugar a movimentos pulsionais, que acabam por “custar a alguns objetos seu posto”. Um destes efeitos são os sinais de impotência sexual quando ele se encontra com sua amante. Atribuir este fato a uma menopausa (dele) é algo que nos ludibriaria se ali fossemos amparar a nossa própria impotência.
Dentro da parceria que havia se instalado entre o paciente e sua amante, foi possível a ele propor a esta que “durma com outro homem para ver no que dá”. No entanto, a amante recusa a participação da terceira pessoa como forma de desembaraçar seu parceiro de suas preocupação e, no lugar disto, produz um sonho que relata ao paciente: “Ela tem um falo e sente-lhe a forma sob suas roupas, o que não a impede de ter também uma vagina e, acima de tudo, de desejar que esse falo a penetre. Nosso paciente, ao ouvir isso, recupera no ato seus recursos e o demonstra brilhantemente à sua sagaz companheira”.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

“O desejo só é captado na interpretação” (II)

O processo de formação do sintoma, de alguma forma, também está a serviço do dormir, por isso a cada vez que no seu lugar fazemos acontecer um encontro com a demanda ($<>D), desfazendo um certo circuito, “O sintoma simplesmente torna a brotar qual erva daninha, compulsão de repetição”, com o objetivo explicito de que não rememore o que deve ficar recalcado. Daí a afirmação de Lacan de que “Não se fica curado porque se rememora. Rememora-se porque se fica curado.”
Passemos ao exame do sonho da Bela Açougueira relendo o relato que ela mesma faz a Freud:
“Eu queria oferecer uma ceia, mas não tinha nada em casa além de um pequeno salmão defumado. Pensei em sair e comprar alguma coisa, mas então me lembrei que era domingo à tarde e que todas as lojas estariam fechadas. Em seguida, tentei telefonar para alguns fornecedores, mas o telefone estava com defeito. Assim, tive de abandonar meu desejo de oferecer uma ceia.”
Freud assim começa a análise deste sonho: “Respondi, naturalmente, que a análise era a única forma de decidir quanto ao sentido do sonho, embora admitisse que, à primeira vista, ele se afigurava sensato e coerente e parecia ser o inverso da realização de um desejo”. Mas de que material decorreu o sonho? Como sabe, a instigação de um sonho é sempre encontrada nos acontecimentos da véspera.”
“O marido de minha paciente, continua Freud, um açougueiro atacadista, honesto e competente, comentara com ela, na véspera, que estava ficando muito gordo e que, por isso, pretendia começar um regime de emagrecimento. Propunha-se levantar cedo, fazer exercícios físicos, ater-se a uma dieta rigorosa e, acima de tudo, não aceitar mais convites para cear. — Ela acrescentou, rindo, que o marido, no lugar onde almoçava regularmente, travara conhecimento com um pintor que o pressionara a lhe permitir que pintasse seu retrato, pois nunca vira feições tão expressivas. O marido, contudo, replicara, à sua maneira rude, que ficava muito agradecido, mas tinha a certeza de que o pintor preferiria parte do traseiro de uma bonita garota a todo o seu rosto. Ela estava muito apaixonada pelo marido e caçoava muito dele. Ela também implorara a ele que não lhe desse nenhum caviar.
Perguntei-lhe o que significava isso, e ela explicou que há muito tempo desejava comer um sanduíche de caviar todas as manhãs, mas relutava em fazer essa despesa. Naturalmente, o marido a deixaria obtê-lo imediatamente, se ela lhe tivesse pedido. Mas, ao contrário, ela lhe pedira que não lhe desse caviar, para poder continuar a mexer com ele por causa disso.”
A chave deste sonho encontra-se numa indicação clínica precisa: a identificação na histérica que deve ser abordada nesse ponto entre o sujeito histérico e a outra mulher. Este ponto que se define no que a outra tem de inimitável.  “Se nossa paciente se identifica com sua amiga, é por esta ser inimitável no desejo insatisfeito daquele salmão...”. Sempre que se tende a pensar na histeria em termos de imitação, o que está sempre correto, deve ser vinculado a um ponto inimitável. Somente podemos saber do indutor do histérico, ao localizar este ponto inimitável no sujeito que verdadeiramente o fascina. No caso da Bela Açougueira, o ponto inimitável é o desejo insatisfeito de salmão da amiga que pode ser substituído pelo desejo insatisfeito de caviar da paciente. Esta operação e uma metáfora indicando que o sonho da paciente de Freud responde à demanda da amiga com a qual ela se identifica. O desenlace do sonho vai dizer que este ponto de identificação é o que surge no campo do Outro. Este ponto sobre o qual trabalhamos nas últimas postagens e que pode ser matemizado por S(A/). Manter este desejo insatisfeito é manter o Outro desejando, daí o sonho ter também um outro endereçamento: “Deu tudo errado, e o senhor diz que o sonho é a realização de um desejo. Como é que o senhor sai dessa, professor?”
A segunda indicação clínica gira em torno da ambivalência que se expressa no fato da paciente desejar e, ao mesmo tempo, não desejar o caviar. É preciso diferenciar esta ambivalência da que aparece nas neuroses obsessivas. Acontece que quando se trata de uma histeria, o desejo não é ambivalente, pois é desejo de ter um desejo insatisfeito. O que se verifica neste sonho é uma substituição de desejos e que está relacionada a uma demanda e não a uma ambivalência: o pedido que lhe faz a amiga para jantar em sua casa. Esta demanda, que nunca deve ser depreciada quando se trata de uma histérica, aponta a cena onde o desejo se articula: Seu marido fala de forma elogiosa desta amiga, mesmo que ele prefira as mulheres mais cheinhas. É, pois a partir da demanda da amiga que o sonho é produzido. Não nos esqueçamos que a demanda sempre aponta o vazio no campo do Outro.
Lacan, neste ponto de suas elaborações teóricas, pode contribuir de forma decisiva à prática clínica ao tratar a articulação entre demanda, desejo e necessidade. Esta articulação para qual estamos chamando a atenção, também vai acontecer no caso de neurose obsessiva que será trabalhado futuramente.
No sonho da Bela Açougueira, esta responde à demanda da amiga fazendo de seu desejo – substituído ao próprio – o fracasso de sua própria demanda. Sabemos que a demanda é intransitiva, ou seja, sem objeto, assim o sonho tem como função manter aberta a pergunta sobre o desejo, para que, ao final do sonho, possa surgir a identificação desta paciente com o salmão. Esta identificação com o objeto do desejo é o que faz com que o sujeito indeterminado do inconsciente, esse sujeito que desliza ao longo da cadeia significante, se detenha: “Ser o falo, nem que seja um falo meio magrelo. Não está aí a identificação última com o significante do desejo?”
O que está em jogo neste sonho? O nada que habita o entre dois significantes: o sujeito, inicialmente indeterminado, encontra em certo momento sua condição de existir no objeto que o determina. Objeto este desenhado no campo do Outro a partir da interpretação que se fez deste vazio inscrito na demanda como falta-a-ser.
Encontramos aqui uma definição de desejo preciosa, em sua articulação com a demanda e a necessidade, ao mesmo tempo em que explicita as paixões do ser como respostas à falta-a-ser:  
“O desejo é aquilo que se manifesta no intervalo cavado pela demanda aquém dela mesma, na medida em que o sujeito, articulando a cadeia significante, traz à luz a falta-a-ser com o apelo de receber seu complemento do Outro, se o Outro, lugar da fala, é também o lugar dessa falta.” Com esta afirmação, Lacan localiza o desejo, a partir do Grafo, neste intervalo entre o (A), lugar da fala e o ($<>D), lugar onde o sujeito, articula a demanda à falta-a-ser S(A/).
“O que é assim dado ao Outro preencher, e que é propriamente o que ele não tem, pois também nele o ser falta, é aquilo a que se chama amor, mas são também o ódio e a ignorância.” Lacan localiza com esta passagem as paixões do ser no ponto de falta do Outro: S(A/) e conclui o parágrafo com uma explanação sobre o porque não é recomendável agir a partir da resposta à necessidade: “É também isso, paixões do ser, o que toda demanda evoca para-além da necessidade que nela se articula, e é disso mesmo que o sujeito fica tão mais propriamente privado quanto mais a necessidade articulada na demanda é satisfeita.” Esta entrada pelo viés da resposta da satisfação da necessidade desvela o engodo do amor ao explicitar que o “o ser da linguagem é o não-ser dos objetos” fazendo com que não seja possível situar o pensamento no nível de realidade que não seja a psíquica. Uma pequena referência à anorexia nervosa vem exemplificar muito bem do que se trata: “É a criança alimentada com mais amor que recusa o alimento e usa sua recusa como um desejo.”
Continuaremos, retomando os caminhos do desejo pelos desfiladeiros do significante para tratar de um caso de um final de análise em uma neurose obsessiva.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

“O desejo só é captado na interpretação”


Hoje iniciamos a leitura da última parte do texto “A direção do tratamento...”. Esta parte, nomeada a partir da junção do desejo e da letra, fala do desejo em sua articulação com a demanda e a necessidade. Para levar a cabo esta tarefa, Lacan toma o sonho, tal como Freud o trabalhou: como paradigma. O trabalho com os sonhos contribuiu para a teorização do inconsciente freudiano e a constatação da importância do desejo em sua constituição. O que se busca escutar nos sonhos é “o desejo, não as tendências” lembra Lacan a partir do exame que faz das palavras “Wunch” e “Wish”. Ambos se referem à “votos”. Não podemos nos esquecer que o desejo se articula em caminhos “ardilosos”.
Utilizar o grafo do Desejo, tal como está definido no texto “A subversão do sujeito...”, vai nos auxiliar aqui. No entanto, vamos lembrar, mais uma vez, que quando “A direção do tratamento...” foi escrita, faltava a Lacan o recurso ao objeto “a” pensado a partir do Real do gozo. Naquele momento tratava-se de um objeto em sua vertente de realidade imaginária.
Para tomar o “desejo ao pé da letra”, Lacan vai começar examinando dois sonhos. O primeiro é um sonho descrito por Freud em “A interpretação dos sonhos”. Trata-se do sonho de uma histérica, conhecido como “sonho da bela açougueira” onde se ilustra o aparecimento de um desejo de ter um desejo insatisfeito. O outro relato é de um caso clínico do próprio Lacan. Trata-se de uma das raras ocasiões em que ele utiliza um de seus casos em seu ensino. Laurent o denomina o “caso do obsessivo e o véu” e diz que com estes dois sonhos temos dois movimentos distintos: “por um lado o desenvolvimento de todo um tratamento de uma histeria a partir de um sonho da obra de Freud e, por outro lado, o resumo de um tratamento de um obsessivo em um sonho”.
É preciso distinguir duas dimensões no que diz respeito ao desejo no exame do caso da “Bela Açougueira”: “um desejo de desejo, ou seja, um desejo significado por um desejo (o desejo da histérica de ter um desejo insatisfeito é significado por seu desejo de caviar: O desejo de caviar é seu significante), inscreve-se no registro diferente de um desejo que substitui um desejo (no sonho, o desejo de salmão defumado próprio da amiga vem substituir o desejo de caviar da paciente, o que constitui a substituição de um significante por outro significante).”
Estas duas funções são decorrentes da “oposição fundamental entre o significante e o significado, na qual se demonstra que começam os poderes da linguagem:
a) A substituição de um termo por outro para produzir o efeito de metáfora;
b) a combinação de um termo com outro para produzir o efeito de metonímia.”
O comentário que Lacan vai nos propor centra-se em uma fórmula: o sonho é uma metáfora do desejo. É o que indica a produção de um efeito de sentido no sonho. Este efeito de sentido pode ser verificado em vários outros momentos e situações ligadas à clínica psicanalítica. Aqui, nos lembra Laurent, trata-se de uma produção de sentido positiva: “é passagem do sujeito ao sentido de seu desejo”. Quando examinamos um sintoma constata-se que este, mesmo sendo uma metáfora, não produz um efeito de sentido que introduz o sujeito no sentido de seu desejo. “O sintoma é uma metáfora congelada, uma metáfora do lado do sem-sentido.”
Em seguida somos lembrados de que o sonho não é o inconsciente, mas sua via régia, assim como também se diferencia do desejo que é definido como “metonímia da falta-a-ser”.
Hoje, não nos é desconhecido que Freud se interessava apenas pelas elaborações do sonho, ou seja, “sua estrutura de linguagem”. Mesmo antes que F. de Sausurre elaborasse sua teoria, ele já depreendia esta estrutura por caminhos diferentes na medida em que visava fazer o sujeito “reencontrar-se no sonho como desejante, o que é o inverso de faze-lo reconhecer-se ali como sujeito, pois é como que em derivação da cadeia significante que corre o regato do desejo, e o sujeito deve aproveitar uma via de confluência para nela surpreender seu próprio feedback.” O que se depreende desta passagem é que “o desejo só faz sujeitar o que a análise subjetiva”. E a análise possibilita a subjetivação pela interpretação, pois, somente ela capta o desejo, pois é a interpretação que vai apontar “a relação do desejo com essa marca da linguagem que especifica o inconsciente freudiano e descentra nossa concepção do sujeito”. A interpretação é o que vem interromper a sequência metonímica que remete sempre de uma significação a outra significação. Esta interrupção é o que provoca o despertar a partir do encontro com a demanda, no ponto onde há o vazio de significantes. Em outras palavras o Real. O sonho do pai que vela o corpo do filho que queima é um bom exemplo disto. A frase que desperta o sujeito: “Pai, não vês que queimo!” remete à própria demanda deste pai que se coloca como filho diante da impossibilidade da existência de um pai que possa faze-lo subjetivar a morte. Evitar este encontro é a função do sonho, ou seja: “O sonho serve, antes de tudo, ao desejo de dormir”.