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terça-feira, 29 de abril de 2014

“Au petit bonheur la chance!...ou quando a contingência de um bom encontro escapa ao discurso da ciência.”

Lacan nos lembra em seu texto “Auto comentário” que, partindo da chicane que desemboca no ato sexual possível é fundamental estabelecermos a estrutura do discurso que nos diz do mundo que habitamos. Estrutura que aponta para a felicidade do encontro, pois aos homens não lhes falta a felicidade. Acredito que a referência à felicidade se sustenta na pulsão e seu circuito. Esta nunca falha em atingir seu objetivo que se resume em seu trajeto em torno deste "troço" de Real que está aí enquanto objeto pequeno “a”. Objeto que, também, pode ser definido como um recorte de Das Ding. Por isso é fundamental que o percurso de uma análise chegue ao ponto de poder dar ao sujeito a chance de um bom encontro que, a partir mesmo do atravessamento da fantasia fundamental promove uma retificação na pulsão produzindo uma nova aliança.
Este recorte é que nos diz da impossibilidade do Real, expressa pela afirmação de que “não há relação sexual”.
 
Mas o que é o Real?

Este termo foi introduzido por Lacan, primeiramente, em relação a dois outros: Simbólico e Imaginário. Somente mais tarde ele acrescentou um quarto termo: o sinthoma.
Pierre Naveau, em seu texto “A teoria lacaniana do encontro” (Lettre Mensuelle, 161 pag. 22) nos diz que este Real (não há relação sexual) pode ser abordado de maneiras diferentes:

1 - porque o ser humano é um ser falante: a casa que habita é a linguagem.
2 - pelo viés do saber ou seja, entanto que ser de saber. (Em sua "Nota Italiana" Lacan diz que “neste Real - que não há relação sexual - é um saber que está em jogo”).
 
O fato de habitar a linguagem e neste Real existir um saber o que em jogo, podemos dizer que o impossível indicado por “não há” se refere a que algo não se escreve. O saber em questão, portanto, se baseia no fato de "a relação sexual" não poder se escrever, que é impossível escrevê-la. O Real coincide com o impossível. 
A relação sexual enquanto impossível de se escrever, não pode ser apreendida senão por acaso, no encontro. Este acaso implica uma operação que toca a escritura, ao fato de saber precisamente se no encontro, a relação sexual se escreve ou não.
Este encontro é abordado, por Lacan, a partir da relação entre as três modalidades de ordem lógica: a contingência, o impossível e o necessário.
P. Naveau é bastante claro na sua articulação entre estas três modalidades: “A diferenciação entre estas três modalidades é efetuada no modo da negação, que é susceptível de recair sobre o verbo cessar e sobre o verbo “se escrever”. Trata-se de saber, de fato, de uma parte, se isso cessa ou não cessa e, de outra parte, se isso se escreve ou não se escreve. Estamos diante, portanto, da questão da inscrição e da temporalidade da inscrição. O ponto-pivô da relação entre as três modalidades é a contingência, A impossibilidade está caracterizada pelo que não se escreve e o necessário pelo que se escreve. A passagem do impossível em direção ao necessário se opera por intermédio da contingência que introduz uma modificação, - o que não se escreve vem, neste instante, a se escrever. A felicidade (bonheur) do encontro se apega, agora, à possibilidade, tão súbita quanto imprevisível, da inscrição?”
É neste ponto que entra o amor, construindo uma relação de suplência a partir de um significante singular (o Falo) que se escreve, opondo-se à relação sexual que não se escreve. A suplência que se opera é, portanto, relativa à escritura e se funda na contingência do encontro. Sendo algo da ordem da escritura podemos dar um passo a mais, com Lacan, e dizer que o suporte do amor é o saber, não o saber da consciência, mas o saber inconsciente: “Todo amor se suporta de uma certa relação entre dois saberes inconscientes.” (Lacan, Encore, pag. 31). Onde não há relação entre os sexos se têm uma relação entre os saberes.
Ao nível do sexual, para retomarmos nosso fio da meada, o encontro amoroso leva a um impasse. De um lado temos o homem que toma a mulher como parceiro sexual e dela faz causa de seu desejo. Isto só é possível pela substituição de "a" por "A". O gozo do corpo do Outro J(A) o sujeito, enquanto barrado,o corta, o fragmenta. Desta forma o corpo da mulher é abordado pelo homem em um ponto: "a". É isso que conta para o gozo masculino. A mulher, de sua parte, está mergulhada na interrogação sobre seu próprio gozo que, mesmo para ela, é um enigma S(A/). É desta forma que a heterogeneidade entre o gozo masculino e o gozo feminino vai dar consistência a esse Real - que não há relação sexual. O que temos, neste ponto, é uma falha, um abismo entre o gozo do Um e o gozo do Outro.
Neste momento é preciso introduzir o quarto termo, o sinthoma que vai fazer consistir o encontro enquanto tal.
O que o sujeito vai encontrar no parceiro é a consequência desse Real (que a relação sexual não existe), ou seja, um traço do impossível é conservado pela contingência do encontro, pelos dois parceiros. P. Naveau nos diz que “o contigente traz a marca do impossível. O sujeito encontra, no parceiro, a consequência da heterogeneidade do gozo do Outro, quer dizer, o que faz a solidão e o exílio do ser do sujeito: o sinthoma. O sujeito encontra, no parceiro o sinthoma que, segundo Lacan, corresponde à maneira como o parceiro está afetado pela brecha do impossível.
Mas, precisamos da certeza porque só ela pode transmitir-se ao demonstrar.
É fundamental apreciarmos o valor da exigência de certeza que Lacan introduziu na clínica. Duas são as formas que esta certeza se apresenta e que estão explicitadas na frase acima: demonstração e transmissão. Em ambos os casos ele liga a certeza ao Real, mas para distinguir "dois reais":
1 - o da ciência que define, a princípio como o real do número, enraizado na linguagem e 
2 - o da psicanálise: o Real do inconsciente. É com respeito a este Real que só se aborda pela psicanálise que Lacan convoca a exigência de certeza, para elaborar um tipo de certeza que é própria à psicanálise.
Se tomamos o caminho da demonstração, vamos perceber que só podemos aceder ao Real pelo impossível. Na vertente da ciência verificaremos que é pelo viés da lógica como ele pode ser posto em valor. Pela psicanálise, seu acesso se dá por um impossível bem singular, que se enraíza na contingência e não na necessidade.
Esta demonstração, como a transmitimos? Na ciência ela é feita pela escritura, pelas fórmulas, etc., enquanto na psicanálise esta transmissão “é feita, exatamente pela fuga do sentido, por isso que foge, que corre, e não pelo que não se mexe, que fica lá no seu lugar, que não pode ser de outra maneira. Quer dizer que ela não responde aos critérios aristotélicos de épisteme” (JAMiller, Lettre Mensuelle 161).
É “au petit bonheur la chance”! 
O que existe é do contingente, por isso nosso discurso é arriscado e aparentemente impedido de qualquer certeza. Nada há de substancial, de tangível deixando o campo da certeza para o que estamos chamando de “au petit bonheur la chance”: “Nossa certeza está aí, na medida em que a contingência é suscetível de demonstrar o impossível”.
Dito isto, concluímos que a transmissão pela fuga do sentido é a transmissão que acontece na experiência analítica e que difere, essencialmente do ensino. A ciência, esta sim pode ser transmitida pelo ensino. A psicanálise, esta só pode transmitir o que é da ordem da sua certeza pela experiência analítica ela mesma.
A exigência científica que nos traz Lacan é feita para afirmar um Real próprio ao inconsciente e um modo de acesso à certeza próprio à psicanálise.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Visitando o Seminário XI: A pulsão, seu circuito e seu objeto (II)

Outra forma de se trabalhar o que descrevemos na Postagem anterior, é assim descrita por Pierre Skriabine[1]: (Na transferência podemos identificar duas faces) “A face indexada por A, referida ao Outro - Outro da verdade e o Outro do amor - é aquela da suposição de saber, mas também aquela do engodo do amor e da identificação ideal.” A transferência se ordena aí entre $ e A/ e coloca em jogo uma suposição de saber que se liga ao significante. O Outro entra como Outro do saber e, o que se desdobra, fica no registro da alienação transferencial. O sujeito não tem outra escolha senão o registro do significante, permanecendo no campo, no plano, como o diz Lacan, da identificação.
A face ‘a’ é aquela da transferência como fechamento do inconsciente, mas que permanece referido também ao Sujeito Suposto Saber, e exige um Outro, um Outro completado do ‘a’ como consistência lógica. Um Outro a quem o sujeito será remetido à causa de seu desejo. A transferência coloca, então, em jogo o Outro do desejo, e supõe um saber que se liga ao objeto.
A separação é aí possível, e é isto que permite o desejo do analista, na medida em que ele leva a demanda à pulsão. O sujeito pode então vir a este lugar de ‘a’, e a relação ao Outro se jogará, neste momento, entre ‘a’ e ‘A’, sob o eixo de uma subjetivação sem sujeito, acéfalo, como diz Lacan. É o eixo, o plano da pulsão, e é porque o sujeito pode vir em ‘a’, se identificar ao objeto e encontrar seu complemento de ser na separação. O que temos, então, é o que Lacan chama de ultrapassagem do plano da identificação.
Quando Freud introduziu a pulsão, fazendo uso dos recursos da linguagem: voz ativa, passiva e reflexiva, ele o fez dando a elas nada mais do que o estatuto de um envelope. “O que é fundamental, ao nível de cada pulsão, nos diz Lacan, é o ir e vir onde ela se estrutura.”[2]
Este circuito, esta “Verkehrung”, demonstrada, p. ex., na “Shaulust” (prazer de ver) vai se apresentar como tendo três tempos, e não apenas dois, como se quis acreditar por muito tempo: No terceiro tempo vai acontecer a “aparição de ‘ein neues Subjekt’ que é preciso entender assim - não que já não houvesse aí um, a saber o sujeito da pulsão, mas é novo ver aparecer um sujeito. Esse sujeito, que é propriamente outro, surge na medida em que a pulsão pode fechar seu curso circular. É somente com sua aparição, ao nível do outro, que pode ser realizado isso que aí é a função da pulsão”[3].
O que temos até aqui: uma pressão (Drang) que parte das bordas que constituem a fonte (Quelle), a zona erógena em busca de um objeto (Objekt). Este circuito se sustenta por uma tensão que é sempre fechada e não pode ser isolada de seu retorno sobre a zona erógena.
Quanto ao alvo (Ziel), Lacan vai esclarecer que se Freud pode dizer que a pulsão é “zielgehemmt”, inibida quanto ao alvo, é porque, na verdade, a pulsão não se define em momento algum pela realização de uma função biológica. Aliás, é neste ponto que ela se separa, definitivamente, de uma possibilidade qualquer de psicologização. Sendo construída a partir de uma experiência do inconsciente, o “Trieb” vai interditar qualquer tentativa de moralização através do recurso ao conceito de instinto. “A pulsão freudiana nada tem a ver com o instinto”[4] e é nisso que ela é parcial.
Vamos diferenciar, com Lacan, o “aim” (alvo) da pulsão, do “goal” (objetivo - a palavra “goal”, diferenciando-se de “aim”, na língua inglesa, vai se prestar a explicitar melhor o trajeto pulsional. Enquanto o ‘aim’ (alvo) vai se definir pelo caminho, pelo trajeto mesmo da pulsão, o “goal” é outra coisa. Lacan utiliza o exemplo do tiro do arqueiro (a metáfora se presta, também para esclarecer a frase de Heráclito, que abre o seminário: “ao arco é dado o nome de vida - Bios, e sua obra, é a morte”),  para dizer que o pássaro que se abate é o “aim”, enquanto o “goal” vai ser: marcar um ponto.
“Se a pulsão pode ser satisfeita sem ter alcançado isso que, aos olhos de uma totalização biológica, seria a satisfação ao seu fim de reprodução, é que ela é pulsão parcial, e que seu alvo não é outra coisa senão este retorno em circuito.”[5]
O exemplo máximo disto que acabamos de dizer pode ser facilmente observado em certos silêncios do analisando, “instância pura da pulsão oral, se fechando sobre sua satisfação”, à maneira como, nos diz Freud, de uma boca que, no auto-erotismo oral, beija a si mesma.
Como do que se trata aqui é da pulsão, devemos ter o cuidado de diferenciá-la de uma pura e simples satisfação auto-erótica. Na pulsão, como já vimos no último seminário, há um objeto em torno do qual ela vai fazer seu circuito. Este objeto, “não é mais do que a presença de um buraco, de um vazio, que pode ser ocupado, nos diz Freud, por não importa qual objeto, e do qual só o conhecemos sob a forma do objeto perdido pequeno ‘a’.”[6] Este objeto não é introduzido pela amamentação primitiva, mas como o resultado, o produto, do fato de que nenhuma amamentação jamais vai satisfazer a pulsão oral.
Falamos de pulsão oral, e as outras pulsões? Como se passa de uma à outra? Lacan vai enfatizar que, contrariamente ao que pensam os autores evulocionistas, não há nenhuma relação de engendramento de uma pulsão à outra. A passagem da pulsão oral para pulsão anal, p. ex., só acontece em função de uma intervenção de algo que não está no campo da pulsão: “é a intervenção, a reviravolta, da demanda do Outro”[7].
Estas pulsões, que não são muitas - não vamos nos esquecer de acrescentar aí, a pulsão escópica - sustentam-se como uma tensão estacionária, uma “Konstante Kraft” que, sob a égide do Princípio do Prazer, explicita que “... é em razão da unidade topológica dos espaços em jogo, que a pulsão toma seu papel no funcionamento do inconsciente”[8].
É desta forma que vamos poder entender que a pulsão, por, se articular  a partir dos termos de tensão, se manifesta ao modo de um sujeito acéfalo. Sua relação ao sujeito do inconsciente, portanto, se resume à topologia: ambos ocupam o mesmo espaço do inconsciente que, nos matemas lacanianos, se faz representar pelo <>: sinal que indica a presença do inconsciente entre a realidade e o sujeito. Por isso, é sempre uma surpresa vermos acontecer “ein neues Subjekt” ao final de um percurso pulsional. Este sujeito, no entanto, só vai acontecer se um Outro, como já dissemos acima, se apresentar.
A presença deste outro nos leva a estarmos atentos para não confundirmos pulsão e perversão. Aliás, Lacan é enfático quando  afirma que a pulsão não é a perversão: Na pulsão o sujeito não está ainda colocado, enquanto que a perversão, ao contrário, se define pela maneira como o sujeito aí se coloca.
A estrutura do voyeurismo se presta a esclarecer estes termos. Por ser uma perversão, o sujeito não está aí “ao nível da pulsão de ver”, mas no final da curva para, aproveitando-se do seu circuito em torno do objeto, fazer aparecer este objeto como possibilidade de gozo (neste caso, o objeto olhar).
Assim, quando o perverso se coloca a olhar, o que ele procura ver é exatamente o objeto, enquanto ausente, mas que pode ser reencontrado com a introdução do Outro (é o que sinaliza a vergonha, p. ex.). Quando Sartre descreve o momento em que um sujeito é surpreendido olhando pelo buraco da fechadura, vai dizer deste ponto em que a presença de um outro vai denunciar, ao sujeito, o fechamento da curva da pulsão que, retornando sobre ele, faz surgir aí, onde até então só havia uma curva acéfala, “ein neues Subjekt”. “A vergonha ou o orgulho me revela, diz Sartre em ‘O ser e o nada’, o olhar do próximo, e a mim mesmo no extremo deste olhar; faz-me viver, não conhecer, a situação de olhado. Porém a vergonha, é vergonha de si, é reconhecimento de que efetivamente sou esse objeto que outro olha e julga.”[9]  
“Se, graças à introdução do outro, a estrutura da pulsão aparece, ela não se completa verdadeiramente senão na sua forma reversa, na sua forma de retorno, que é a verdadeira pulsão ativa.”[10] Lembrem-se que lhes disse a pouco, citando P. Skriabine, que o plano da pulsão é aquele onde o objeto ‘a’, vem completar o Outro (A) com uma consistência lógica, remetendo-o a causa de desejo.
Na pulsão teremos um Outro que apresenta uma consistência lógica, a quem elegemos como causa de desejo (o desejo é desejo do Outro), na perversão, “a verdadeira visada do desejo é o outro, enquanto forçado, para além de sua implicação na cena”. Não é somente a vítima que é interessada no exibicionismo, é a vítima enquanto referida a qualquer outro que a olhe.




[1] Skriabine, P. - “Le defaut dans l’univers”, in Revue de l’Ecole de La Cause Freudienne, Fev.1992. Pag.?
[2] Lacan, J. - “Le Séminaire XI” Op. Cit. Pag. 162
[3] Lacan, J. - Ibidem. Pag. 162
[4] Lacan, J. - “Du ‘Treib...”, Op. Cit. Pag. 851
[5] Lacan, J. - “Le Seminaire XI”, Op. Cit. Pag. 163
[6] Lacan, J. - Ibidem. Pag. 164
[7] Lacan, J. - Ibidem. Pag. 164
[8] Lacan, J. - Ibidem. Pag. 165
[9] Sartre, J.P. - “El ser y la Nada”, Editorial Losada, S.A. Buenos Aires, 1966. Pag. 337. (grifos de Sartre)
[10] Lacan, J. - “Le Séminaire XI”, Op. Cit. Pag. 166

terça-feira, 15 de abril de 2014

Visitando o Seminário XI - A pulsão, seu circuito e seu objeto (I)


          Após uma breve introdução com comentários sobre o trabalho de Alexander - Alexander tinha, como tese central de sua teoria psicanalítica, a idéia de que a transferência deveria ser controlada e mantida fora do tratamento, para que este pudesse ter uma duração menor - Lacan retoma a sua discussão sobre a pulsão: “A transferência é isto que manifesta, na experiência, a colocação em ato da realidade do inconsciente, entanto que ela é sexualidade”[1], e esta manifestação se faz presente tanto mais claro quando, em “certos momentos ela se manifesta, a descoberto, sob a forma do amor”[2].
No entanto, esta manifestação amorosa, não vai representar o ponto culminante, o fator indiscutível da sexualidade na transferência, pois é a pulsão que vai dar-lhe sustentação.  Isto é o que vamos verificar aqui.
É o texto freudiano, “A pulsão e suas vicissitudes” que vai demonstrar isto, a partir da própria divisão que Freud lhe deu: uma primeira parte onde trabalha o desmonte da pulsão e uma segunda parte onde ele vai tratar da vida amorosa.
O que vai se colocar contra esta idéia de que o amor é o ponto culminante da transferência é que ele não é, em momento algum, considerado como a “essência” ou a “função” do que poderia se chamar “die ganze Sexualstrebung”: a totalidade da tendência sexual.
Todo o esforço de Freud vai ao sentido de mostrar que “sob a ótica da finalidade biológica da sexualidade, a saber, a reprodução, as pulsões tais como se apresentam no processo da realidade psíquica, são pulsões parciais”[3]. Se elas se mantêm numa estrutura, numa tensão que as estabilizam, é em função de um fator econômico. Fator este que está aí colocado apenas para dizer que todo este aparelho funciona apenas com o objetivo de manter certo nível de homeostase das tensões internas. No “Projeto...”, Freud designou um grupo de neurônios para exercer esta função e lhe deu o nome de “Real-Ich”.
Este “Real-Ich” é um “Ich” sem sujeito, estando submetido a este quantum de energia e obedecendo apenas às variações de suas tensões a partir dos sinais que lhe são enviados respeitando o Princípio do Prazer. Quanto a esta energia, “que se articula como processo primário no inconsciente (...) não é alguma coisa que se cifre, mas que se decifra. (...) É o gozo mesmo, que em nenhum caso faz energia, e não saberia se inscrever como tal”[4], permanecendo sob o envelope formal do sintoma que aí tenta fazer valer uma distância mínima, necessária à manutenção da vida.
Este ponto pode-se denominá-lo, com Lacan, de ponto de opacidade ou, se se quiser, aquilo que claudica na operação significante: S1 - S2 /a. Isto aponta para o fato de que esta energia tem um colorido sexual, formalmente mantido por Freud, como inscrito no mais íntimo de sua natureza. “É uma cor-de-vazio, suspenso na luz de uma brecha”[5].
 Retomemos o sistema homeostático para reafirmarmos que “as pulsões só entram em jogo sob a forma de pulsões parciais”[6], sendo estas apenas uma montagem conforme a estrutura de brecha, que é a do inconsciente, onde o desejo vai encontrar os limites impostos pelo chamado Princípio do Prazer. Estes limites estão aí, exatamente na medida em que o Princípio do Prazer se refere a uma realidade que é a própria homeostase. Esta realidade é o campo aonde vai se desenrolar a batalha de nossa práxis, campo aonde a transferência vai se apresentar como uma das possibilidades de recuperação do equilíbrio perdido, ao buscar um Sq, um saber que restitua ao sintoma suas funções de encobrir o ponto de falta. Em outras palavras, a transferência acontece nesta brecha, neste entre dois significantes onde o amor vem para dar conta de uma falta que aí se instalou desde sempre. “É neste campo, justamente, que o freudismo isola um desejo cujo princípio se encontra essencialmente nas impossibilidades”[7], no desamparo (Hilflösigkeit).
Para continuar, vou redefinir as bordas desta brecha para, em seguida, saber do circuito pulsional:
De um lado colocamos um dos extremos da experiência analítica: o recalque originário, um significante, sobre o qual vai se edificar o sintoma à maneira de uma pilha de andaimes: “Recalcado e sintoma são homogêneos e redutíveis às funções significantes”[8]. No outro extremo vamos encontrar a interpretação, que “concerne esse fator de estrutura temporal especial”, a metonímia. “A interpretação, no seu termo, aponta o desejo, ao qual, em certo sentido, ela é idêntica. O desejo é, em suma, a interpretação ela mesma.”[9]
                            S <> a.
Podemos esclarecer um pouco mais esta articulação: o desejo é sua interpretação, lembrando Freud: é graças ao Nome-do-Pai que o homem pode se separar do “serviço sexual da mãe”. Em suma, a agressão ao Pai (morte do pai primevo) vai instalar a lei e instituir o desejo a partir da interdição do incesto. O inconsciente, portanto, vai “mostrar que o desejo está enganchado ao interdito...”[10]. A interpretação do que está entre os ditos, o desejo da mãe interditado ao sujeito, pode ser desenhada no matema da metáfora paterna:
                   NP/DM . DM/X (A)/(Falo)   
                                              
aonde se lê: o Nome-do-Pai vem substituir o desejo da mãe deixando ao sujeito um enigma onde deveria haver um significante que pudesse responder à questão fundamental: Que queres? Esta situação de desamparo força o sujeito a ir buscar, no campo do Outro, um significante qualquer que possa lhe dizer do que falta. Significante este ao qual o sujeito está para sempre assujeitado: S1/$. Este significante, para sempre recalcado, o falo, é que determina o intervalo onde a sexualidade, inscrita como pura diferença, vai se instalar e se fazer representar pela pulsão sob a forma da pulsão parcial. “... a pulsão, sem dúvidas, representa e não faz mais que representar parcialmente, a curva da realização da sexualidade no vivente...”[11].
Pode-se, então, afirmar que é a “assunção da castração que cria a falta onde se institui o desejo. O desejo é desejo de desejo, desejo do Outro (tanto no genitivo, quanto no objetivo), submetido à lei”[12].
Sendo este desejo um vazio, será a pulsão que vai possibilitar a que toda a economia deste intervalo não se reduza a uma situação aonde o termo “energia psíquica”, mesmo que possa ser convincente, não vai dizer do que há de “Dasein”, de presença, da sexualidade. É a pulsão, enfim que vai promover a integração da sexualidade à dialética do desejo que passa pelo corpo, este aparelho que coloca em jogo a possibilidade de emparelhar-se a outros corpos. Afinal, foi Freud quem definiu a pulsão, representante da sexualidade, como “um conceito limítrofe entre o somático e o psíquico, o representante psíquico do estímulo originário de dentro do organismo e que alcança a mente, como uma medida da demanda feita sobre esta para trabalhar, como conseqüência mesma de sua conexão com o corpo”[13].
É por isso que a pulsão se torna a única possibilidade de retificação a ser feita numa análise.
(a continuar)



[1] Lacan, J. Le Séminaire XI - Le Quatre concepts fondamentaux de la Psychanalyse, Edition du Seuil, Paris,        1973. Pag. 159.
[2] Lacan, J. -  Ibidem.
[3] Lacan, J. - Op. Cit. Pag. 160
[4] Lacan, J. - “Television”. Edition du Seuil, Paris. 1974. Pag. 35
[5] Lacan, J. - “Du ‘Trieb’ de Freud ao Desejo do Analista”, in Écrits, Edition du Seuil, Paris. 1966. Pag. 851
[6] Lacan, J. - “Le Séminaire XI”, Op. Cit. Pag. 160
[7] Lacan, J. - “Du ‘Trieb...”, Op. Cit. Pag. 852.
[8] Lacan, J. - “Le Séminaire XI”, Op. Cit. Pag. 161
[9] Lacan, J. -  Ibidem, pag. 161
[10] Lacan,J. - “Du ‘Trieb...” Op. Cit. Pag. 852
[11] Lacan,J. - “Le Séminaire XI”, Op. Cit. Pag. 161
[12] Lacan,J. - “Du ‘Trieb...”, Op. Cit. Pag. 852
[13] Freud,S. - “Instincts and theirs vicissitudes”, S.E. Vol. XIV. The Hogarth Press, London, 1973. Pag. 122

terça-feira, 8 de abril de 2014

CIRANDA DE RODA (um conto atual)

Ciranda, cirandinha,
Vamos todos cirandar.
Vamos dar a meia volta,
Volta e meia vamos dar.
O anel que tu me destes
Era vidro e se quebrou...


Quebrou e cá estou eu, só e sem ter mais onde me refugiar. Apenas me ficaram os pedaços, fragmentos com os quais não sei o que fazer. Eles simplesmente estão aí. Alguns mais brilhantes, outros mais opacos mas, apenas fragmentos. Por mais que tenham atrativos, por mais que brilhem, não formam nada, são só fragmentos. Não há mais um anel. Falta algo, que ao consigo saber o que, para uni-los. Mas o anel não se quebrou ? ele era de vidro, frágil. Assim era ele. Tentar colar os pedaços é impossível. Eles não se encaixam mais. O destino deles já está traçado. Eles serão sempre pedaços deste determinado anel. Mas terá que ser assim mesmo ?
Durante tanto tempo o guardei. Ele era tão bonito ! com ele eu sentia que me era permitida a entrada na roda da ciranda. Mas, de repente ele se quebrou. Foi num momento em que eu o apertei com um pouco mais de força. A situação assim o exigia. Talvez tenha sido até um exagero meu, mas agora não adiantam justificativas; o que está feito, está. Mas, como era frágil ! É, mas brilhava muito! Quando eu estava sozinho ficava a admira-lo. Ele brilhava de um modo especial quando o sol lhe batia de lado. Com ele eu me sentia importante. Poucos tinham um igual, aliás igual, igual ninguém tinha. Era só o meu. Mas aí ele se quebrou ! E exatamente quando eu mais precisava dele. Tive vontade de  chorar. Na verdade eu chorei, mas ninguém ficou sabendo. Não; se alguém soubesse como é que eu ainda ia ter chances de voltar à ciranda ? “Isto são coisas de seu foro íntimo”, me diziam. “Mas os outros vão ver que eu não tenho mais o anel, como vai ser ?”, retrucava eu.
Foi então que eu comecei a perceber que nesta ciranda havia algumas pessoas que não tinham um anel. Será que o deles também se quebrara ?, ou eles ainda os mantém guardados, longe da vista de nós outros, apenas para o seu “fôro íntimo”. No entanto, olhando daqui e de longe, alguns parecem que não têm e nem precisam de um anel. Olhe como estão tranqüilos. Pelo menos não precisam tomar tanta conta dele e talvez por isso brinquem com tamanha liberdade.
É, mas tudo isto são modos de tentar esconder de mim mesmo que o medo está grande. O medo de ficar sozinho, sem os companheiros que ainda têm o anel. Talvez eles ainda não tenham precisado aperta-lo. Que bom para eles !...
Mas, como me dá inveja olhar para aqueles lá. Veja como brincam na ciranda ! Veja como exibem os seus anéis ! Veja como brilham os seus anéis !...
Um momento “ Estou vendo algo que não havia visto até agora ! Como é que não enxerguei isto antes ? TODOS OS ANEIS SÃO IGUAIS ! É isso mesmo. São todos iguaizinhos ao que era meu. E eu achava que o meu era diferente “mas como é que eu não enxerguei isso antes !?" ... Talvez o brilho do meu próprio anel não me permitisse ver o que estou vendo agora ou, quem sabe, era porque eu talvez passasse muito tempo admirando o brilho dos outros anéis e por isso não visse que eram iguais ao que era meu. É, mas olhando melhor posso ver também que os tamanhos são distintos: Uns grandes, outros pequenos, mas o modelo... O modelo é único “seriam todos de vidro como era o meu?" Não acredito . Alguns já o usam há tanto tempo e eles nunca se quebraram...
Mas ficar aqui, olhando todas  aquelas pessoas na ciranda curtindo os seus anéis e cantando alto, sem poder participar, está muito ruim. Acho que o melhor é ir de volta para uma nova tentativa.
Cá estou eu de novo olhando para os fragmentos de meu anel. Agora que estou longe da roda o bastante para não ser interrompido pelo barulho, posso perceber que estes fragmentos são bem bonitos. Parece que eles têm algo a dizer. Às vezes tenho a impressão de que eles falam entre si, só que ainda não consigo entender o que eles querem dizer. A sua conversa aparenta tanta desorganização e incoerência!... mas é verdade que tenho agora a liberdade necessária. Sim, uma liberdade que eu não conseguia sentir enquanto estava participando da roda. Lá, têm-se que conformar de alguma maneira. Não se lembra do modelo dos anéis? Eram todos iguais. A música e a letra também eram sempre as mesmas. Até parecia um ritual. Porém agora, os fragmentos que estão à minha frente deixam passar a liberdade. Pode-se até antever que, por trás da aparente desorganização e incoerência, há um sentido. Mas sentido implica em direção e os fragmento não me dão direção alguma, senão seriam como a roda. Só se o sentido for outro: o da procura. Mas uma procura com liberdade. Sim, com liberdade de errar, tentar de novo e errar novamente se for preciso, sem a preocupação de usar um anel que seja maior ou mais bonito que o do outro. Tudo isto está me parecendo um tanto utópico, mas é o que estes fragmentos estão me levando a pensar. Afinal de contas, se isto é utópico o que é verdadeiro? Será a ciranda que é cantada na roda? Enquanto eu usava o anel não tinha estas preocupações. Tinha outras, como já descrevi no princípio, mas estas não. A verdade sempre estava lá, ao meu lado. E nunca poderia haver outra. Eu não precisava me dar o trabalho de ir à sua procura. Ela me era fornecida quase que imediatamente. Bastava eu fazer a pergunta e pronto, logo havia uma resposta. E era sempre resposta que continham aquelas verdades que todos nós gostamos de ouvir. Aquelas que tranqüilizam, mas não comprometem. É isso!, não há comprometimento. Há uma roda, uma música, uma fraternidade, mas não há comprometimento. Não há troca. Na hora de um se comunicar com o outro têm-se medo. E eu achava que era o único que tinha medo." É..., o anel pode se quebrar e aí se perde o acesso à roda...
Tanto tempo se passou para só agora, no sossego do meu canto, longe dos rumores e sons que estão sempre nos seduzindo para alguma direção, eu me permito escutar o que sempre estava junto de mim. Mas foi preciso que o anel se quebrasse para então eu voltar a buscar um determinado espaço, o espaço do silêncio. "Como é fundamental este silêncio” Sem ele o máximo que conseguimos são anéis de vidro. Anéis que nos são dados, como foi o meu. Meu? Agora já não acredito mais nisto. Acho que ele só estava no meu dedo, mas não era meu. Emprestado? Talvez...
A noite já vai alta. A madrugada é silenciosa. Agora nem mesmo o barulho do vai-e-vem da vida à minha volta me importuna. Há um silêncio. Não o silêncio próprio da ausência, da morte, da desesperança. É, porque a desesperança também é silenciosa. Ela nos rouba a vida das palavras tornando-as mudas, vazias. Não, este silêncio de agora é o silêncio da presença. Sei que há vida, esperança e luz. Os fragmentos começaram a se organizar e me refletem esta luz, me proporcionando, em consequência, o que refletir. Há um saber em tudo isto. Um saber no não dito. Apenas está aí e vai ficar. Não vai falar, não vai dirigir, não vai interferir. Apenas e tão somente vai proporcionar a criação de um espaço muito importante onde se possa tentar RECONSTRUIR...

terça-feira, 1 de abril de 2014

A letra no corpo

“É tu que está escrevendo teu rótulo! Paulo Vilheña, ator. [1]
Tatuagem é alma! Tatiane, modelo.
Paredes para se proteger Entrevistada[2].
Tatuagem não é moda, é coisa definitiva, Tatuador.


Desde Freud sabemos que o sintoma psíquico tem, no corpo, seu substrato. Nesta vertente ele pôde inventar um conceito que acabou sendo seu mito principal: a pulsão. Conceito limítrofe entre o somático e o psíquico deu uma consistência lógica à articulação entre o Real do corpo, o Simbólico da palavra e à superfície corporal enquanto imagem. Se o sintoma encontra neste campo uma forma de se escrever, é também neste campo que se verifica como, ao longo dos séculos e nas mais diversas culturas, o homem buscou escrever a sua letra de gozo.
E ele o fez utilizando o espaço que sempre designou seu, na tentativa de vencer as barreiras que a entrada do simbólico trouxe na sua relação com a coisa corporal. Entre o homem e seu corpo há um jogo, no duplo sentido do termo, nos diz Le Breton. De maneira artesanal, milhões de indivíduos fazem-se bricoleurs inventivos e incansáveis de seus corpos.[3] Isso traduz, de alguma maneira um movimento de tomar posse do corpo através da inscrição de uma marca própria: “É tu que está escrevendo teu rótulo! ou então uma forma de investir o corpo como lugar de prazer e criação: Tatuagem é alma!. Mas tudo isso numa busca de substituir os limites que o sentido que sustenta o sujeito no mundo, a partir da interpretação que ele fez do desejo do Outro, pode ser ampliado ao ultrapassar os limites da marca que o simbólico inscreveu. Assim ele pode [4] fixar o sinal de sua diferença: Tatuagem não é moda, é coisa definitiva. Uma conseqüência é que se tenta criar uma outra pele que acaba funcionando ao fazê-lo crer existir Paredes para se proteger.
Riscos, rabiscos, marcas em um corpo que tem a sua origem na incidência de um simbólico que se faz suporte, pois é sabido que a imagem não pode consistir sem esta marca que Lacan, seguindo Freud, chama de traço unário.
Em outras palavras podemos dizer que por um lado existe uma representação primordial do sujeito que se resume nesta marca. Para além dela, para que o sujeito aí se reconheça, ele precisa de uma imagem que esteja estruturada por esta marca do traço unário.
Esta marca produz, além disso, um orifício que acontece como consequência do processo de nomeação. Estes orifícios corporais, produtos do simbólico na forma imaginária têm, como efeito, o real em torno do qual a pulsão vai fazer seu percurso. Um bom exemplo são as orelhas, presença real, às quais responde a voz fazendo eco da palavra sobre o corpo.
O que Lacan vai construir como objeto a é o resultado dos buracos produzidos pela nomeação no imaginário do corpo. Eles têm valor de real enquanto marca e a letra deriva desta marca. Assim se pode constituir a identidade: uma articulação, um nó entre a forma, o nome e o real que é produto da articulação entre a imagem e o sentido.[5]  Além disto, é importante destacar que existe uma afinidade da marca com o próprio corpo, onde se indica que é apenas pelo gozo, e de modo algum por outras vias, que se estabelece a divisão em que se distingue o narcisismo da relação com o objeto[6].
Minha proposta é trabalhar estes rabiscos, letras que marcam um corpo, a partir da borda, limite que elas podem impor ao gozo. O objetivo é, pontualmente, tentar apreender como o traço pode nos sinalizar a relação que um determinado sujeito tem com o seu corpo enquanto Outro e, desta forma, fornecer subsídios para trabalhar este tempo para compreender que é a adolescência.
Parto da estrutura da cadeia borromeana, pois ela nos permite trabalhar este ponto lacaniano, que é o objeto a, enquanto margeado pelo enlaçamento dos três registros: Real, Simbólico e Imaginário.


Na articulação R-S temos Jφ Gozo Fálico
Na articulação R-I temos JA Gozo do corpo enquanto Outro.
Na articulação I-S temos  S1-S2   - Gozo do sentido


Esta é a estrutura que faz emergir o sujeito nos distintos pontos onde o gozo parcial se manifesta, e sempre com a esperança de poder transpassar os limites para alcançar um gozo total, ilusório e assim capturar o que estaria mais além destes limites, reunindo-os neste condensador de gozo que é o objeto a, aqui colocado como ponto central.
Neste contexto, em que a amarração borromeana nos permite falar de uma estrutura que faz emergir o sujeito, podemos nos perguntar a respeito da potência da letra, da escritura como o que pode sustentar e até mesmo fazer reparos quando o pouco de realidade que um sujeito construiu a partir da extração do objeto a não opera. Uma primeira resposta é que a escritura funciona como um ponto de capitonagem, uma sustentação que permite ao sujeito manter e, inclusive, ser produtivo no laço social.
Com respeito à letra podemos fazer duas considerações, conforme nos sugere Sergio Larriera[7]: Em primeiro lugar a letra cumpre a função de transcrever sons da língua (...) entre o que é o traço da escritura e o som dos fonemas que compõem a palavra existe uma ida e vinda da escritura à leitura, um círculo da letra que vai do traço ao som. (...) Por outro lado a leitura e a escritura podem dirigir-se ao sentido, à significação ou à perda de sentido ou o sem-sentido. Lacan, entretanto, desenvolve uma teoria da escritura em seu Seminário IX, onde desenha uma articulação entre o traço unário e a identificação. Neste momento de seu ensino, Lacan vai nos apresentar uma teoria da origem da escritura a partir da letra, sem que esta tenha a função de descrever sons. A letra teria surgido em relação a um objeto determinado, no sentido de ser apenas um traço. O som foi acrescido simultaneamente a partir da associação com o objeto, ou seja, a partir dos efeitos da língua, com o que se nomeiam os objetos. Desta forma, simultaneamente, se nomeia e se rabisca, se marca o objeto sem, contudo, haver uma conexão entre eles. Será somente em um segundo momento, no só depois, que o som vai ser associado ao traço.
Está aqui exposta a razão da potência da letra, na medida em que ela pode estabelecer uma circularidade entre o traço e o som, produzindo efeitos de sentido e de sem sentido. É nesta circularidade e utilizando-se das bordas que demarcam o espaço do objeto a que vamos entender o que se pode chamar de gozo parcial da letra. Disse bordas e parcial para definir que o gozo absoluto seria a satisfação pulsional sem limites, o que seria a pulsão de morte. A letra, pelo contrário, apresenta um efeito de castração, e assim pode funcionar, também, como índice de condensador de gozo. Isto acontece porque a letra produz uma certa mutilação do gozo para coloca-lo em função da letra. A conseqüência disto é que a letra não se restringe a marcar um único tipo de gozo, mas opera com vários tipos de gozo.
Pode-se propor, seguindo Larriera, três tipos de gozo:
1 gozo próprio do corpo da letra;
2 gozo uniano da letra;
3 gozo da produção de sentido.
O primeiro, o gozo próprio do corpo da letra, se evidencia pelo exercício mesmo da escrita, na forma como se trata, p. ex. a caligrafia. Neste tipo de gozo o que se destaca é o aspecto imaginário da letra: o fazer letras simplesmente por faze-las, letras sem sentido, independente do som a que ela corresponde, ou ao sentido que uma sequência pode produzir. Seria como dizer que o rabisco no corpo é como arte, pois afinal: Tatuagem é alma!
O segundo, o gozo uniano da letra, refere-se á invenção do Um, o famoso há o Um (Il y a dUn) que Lacan constrói em seu Seminário XIX[8]. Para não entrar em todas as elaborações matemáticas e filosóficas com as quais Lacan sustenta sua invenção, vamos resumi-la, para nosso propósito, dizendo que este gozo uniano da letra trata da função da letra como puro traço que borra o objeto. Esta referência vai na direção do que se disse acima quando tratamos da origem da escritura a partir do que Lacan elaborou no Seminário IX, quando o traço tinha a função apenas de negar as particularidades do objeto, reduzindo-o a um traço, uma marca na parede da caverna. Este gozo uniano está na corrente do que se propõe Joyce, p.ex. quando desmonta a língua em seus escritos, negando-lhe o serviço a qualquer significação. Não se podem compor cadeias, restringindo-se aos puros sons, à musicalidade, embora isto se aproxime muito da poesia. Este é o gozo uniano da letra, com o qual se nega a particularidade da comunicação, ou seja, do significante enquanto o que representa um sujeito para outro significante, deixando apenas restos pulverizados da língua. Neste caso, pode-se dizer que assim se constroem Paredes para se proteger.
O terceiro modo, o gozo da produção de sentido, diz respeito a um gozo semântico que busca aproximar-se do impossível do objeto, modela-lo, desfrutando do deslizamento metonímico, e do prazer metafórico de produzir sentido. Talvez aqui possa ser inscrita a presença do traço unário como sustentação do significante em sua função de representar um sujeito para outro significante e, desta forma dizer que, ao marcar o corpo, traduzindo passagens, lembranças, amores de sua vida, vai-se estar escrevendo teu rótulo.
Seja qual for a causa que mobiliza o rabisco, ele não é moda, é coisa definitiva e se presta ao mal-entendido que faz andar o mundo.  É graças ao Mal-entendido universal que o mundo inteiro se entende. Porque se algum dia, para nossa desgraça, nos compreendêssemos, jamais chegaríamos a um acordo[9].



Referências Bibliográficas:

Baudelaire, Charles. Poesia e Prosa. Trad. Fernando Guerreiro, Editora Nova Aguilar S.A. Rio de Janeiro, 1995.

Brousse, Marie Helene. A propósito del cuerpo en la enseñaza de Lacan. Seminario de Investigación: El cuerpo en Psicoanálisis, Escuela Lacaniana de Psicoanálisis del Campo Freudiano, Madrid, 2001. 

Lacan, Jacques. Le Seminárie XIX Ou pire... Inédito.

Lacan, Jacques. O Seminário VII O avesso da psicanálise. Trad. Ari Roitman. Jorge Zahar Editor Ltda. Rio de Janeiro. 1992.

Larriera, Sergio, El cuerpo en Joyce. Seminario de Investigación: El cuerpo en Psicoanálisis, Escuela Lacaniana de Psicoanálisis del Campo Freudiano, Madrid, 2001. 

Le Breton, David. Signes didentité Tatouges, piercings et autres marques corporalles. Éditions Métailié, Paris, 2002.



[1] Notas extraídas de um programa de televisão Tribos, GNT, domingo, dia 17/10, às 18:30 hs.
[2] Neste quadro, duas entrevistadas dão os seguintes depoimentos: 1ª- Fiz tatuagem com 14 anos, deu a maior confusão lá em casa, minha mãe é liberal e concordou. 2ª- Outra, da mesma idade: minha mãe adorou!
[3] Le Breton, p. 7
[4] Le Breton, p. 9.
[5] Brousse, p. 155.
[6] Lacan, S. VII. P. 47
[7] Larriera, p. 146 e ss.
[8] Lacan, S. XIX. Lição de 15 de março de 1972,
[9] Baudelaire, p. 547.