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terça-feira, 19 de novembro de 2013

Como Agir com seu ser: Sobre o Desejo do Analista

Retomaremos a leitura do texto “A direção do tratamento...” na sua parte IV que está centrada sobre “a questão do ser do analista”. Esta questão, Lacan nos lembra, foi colocada em evidência, pela primeira vez, por Ferenczi, quem sempre se preocupou com a ação do analista que, ainda segundo Lacan, “antecipa de longe os temas posteriormente desenvolvidos da tópica”. A partir destas articulações de Ferenczi, podemos recolocar a questão: trata-se de saber o que pode o analista fazer com o seu ser que não pôde ser "introjetado" pelo analisante. Isto faz referência, é claro, ao que Lacan nos informa sobre o que entende Ferenczi a respeito da “absorção, na economia do sujeito, de tudo o que o psicanalista apresenta no duo como Hic et nunc de uma problemática encarnada”. O final de análise, pode-se rir disto hoje, estaria estruturado sobre a comunicação que o analista faria a seu paciente sobre “o abandono que ele mesmo está em vias de sofrer”. Seria uma forma de, confiando ao paciente este sentimento, promover assim a crença de que ele poderia fazer falta a alguém. Ora, sabemos bem que a “falta-a-ser” deve estar no cerne da experiência analítica. Esta é sua política e é o que define seu objetivo. É fundamental, no entanto, saber que ao se fazer esta comunicação, da forma como propõe Ferenczi, corre-se o risco de alimentar o campo mesmo da paixão do neurótico que é o seu sofrimento de sua “falta-a-ser”.
Mas, o que é o ser? Podemos defini-lo de uma forma suscita, como o faz Laurent: “O desejo”. Ele esclarece esta afirmação diferenciando o ser dos filósofos do ser ao qual Lacan faz referência aqui: “Não somos filósofos, não pensamos que o homem tenha como ser algo que não seja o desejo, somente este constitui seu ser”. Em outras palavras, o ser aqui se refere exatamente à falta-a-ser, à este vazio do sujeito que constitui seu desejo.
Na segunda divisão, Lacan tece alguns comentários em referência aos autores ingleses, especialmente Ella Sharpe a quem tece um elogio reconhecendo-lhe o mérito de preservar “o próprio desejo em um outro lado, em um lugar diferente daquele no qual encarna para seu paciente a figura do gozo”, como assinala Laurent. Seu conselho para os analistas é deixar de lado a bondade e ler um pouco. Esta escolha “é uma feliz indicação de princípios”, no que pese o fato de que o papel central nos textos aconselhados seja o significante falo.
A terceira divisão trata dos finais de análise que preconizam a identificação do sujeito ao analista, se bem que, ironiza Lacan, “certamente varia a opinião quanto a ser de seu eu ou do Supereu (do analista) que se trata”. Neste ponto são destaques as referências a Melanie Klein e às diferenças entre suas articulações em torno do objeto e as de Lacan: “A dialética dos objetos da fantasia promovida na prática por Melanie Klein tende a se traduzir, na teoria, em termos de identificação”. Esta identificação sustenta a presença destes objetos como significantes. “Ele (o sujeito) é esses objetos, conforme o lugar em que eles funcionem em sua fantasia fundamental”. Ou seja, o objeto que interessa a Klein é o objeto da fantasia. Sabemos que o sujeito, em sua fantasia fundamental, oscila entre sua posição de sujeito e sua posição de objeto. Klein acredita que é enquanto objeto que o sujeito pode fazer frente a afânise própria de sua condição. Ao assim fazer, ele se sustenta em seu ser, ser que se apresenta dividido, fragmentado nos intervalos da cadeia significante. Sua presença se dá no próprio desejo que se estrutura na metonímia significante, graças à fantasia que promove a articulação entre sujeito e objeto conseguindo, desta forma fazer “um” imaginariamente. Por isso quando alguém diz: “Eu sou merda” ele está fazendo-se existir identificando-se ao objeto de sua fantasia.
É isto que Lacan critica e recusa: um final de análise a partir desta identificação com o ser da fantasia. Laurent esclarece: “A relação com o ser não é uma relação com a fantasia, mas sim uma relação com o desejo”. É por isso  que a demanda de felicidade que chega ao analista deve ser escutada com atenção. “Perde-se muito tempo procurando a camisa de um homem feliz”, escreve Lacan em 1958, para afirmar, em ‘Televisão’  que “o homem é feliz”.  Esta demanda, na verdade, é demanda de objeto nenhum: “Ele me pede... pelo fato de que fala: sua demanda é intransitiva, não implica nenhum objeto”. Apenas o sujeito é transitivo aqui, por isso pode-se perceber uma antinomia entre o sujeito e a demanda. É fundamental “formular uma ética que integre as conquistas freudianas sobre o desejo: para colocar em seu vértice a questão do desejo do analista”. Basta que se convide alguém a falar para que o transitivo do sujeito venha à luz através de um significante qualquer que irá representa-lo para outro significante. Sabemos que o analista vai ocupar este lugar do significante que vem depois, do Sq, do significante qualquer que poderá produzir a significação demandada.
Deste lugar “mais vale não compreender para pensar”, nos diz Lacan fornecendo mais uma formalização do que poderia ser distinguido como indicações técnicas.  

terça-feira, 12 de novembro de 2013

O matema da transferência e o Sujeito Suposto Saber na Segunda Clínica

No Seminário XI Lacan vai trabalhar de maneira consistente o conceito de Sujeito Suposto Saber e o Desejo do Analista traçando, com precisão, o ponto em que se articulam. Este tema está indissociável da formação do analista. No início do capítulo que XVIII, está explicitado que o ensino de Lacan visa a formação de analista. Talvez seja uma resposta direta à proibição que ele acabava de sofrer por parte de seus colegas que dirigiam a IPA, de tomar candidatos em análise e de fazer a transmissão de seu ensino. A verdade é que nesta lição dedicada ao Sujeito Suposto Saber vamos poder discernir algumas passagens que são como fragmentos de técnica analítica. Para não me alongar muito vou destacar apenas a recomendação a uma análise pessoal como única forma de não cair na ordem da cerimônia, assim como o fato de que diante da falta de garantias apresenta-se o que o analista obtém do analisando que é, como exprime Lacan, “de um preço inestimável – a confiança enquanto tal, e os resultados que isto comporta pelas vias de uma certa técnica. Ora, ele não se apresenta como um Deus, ele não é Deus para seu paciente. O que significa, então, esta confiança: Em torno do que ela gira?”
“Sem dúvidas, para aquele que aí faz confiança, que recebe a recompensa, a questão pode ser elidida. Ela não o pode ser para o psicanalista. A formação do psicanalista exige que ele saiba, no processo no qual que ele conduz seu paciente, em torno do que o movimento gira. Ele deve saber, a ele deve ser transmitido, e em uma experiência, isso onde ele retorna. Esse ponto pivô é o que eu designo, diz Lacan, sob o nome de desejo do psicanalista.”
Saber e desejo estão aqui articulados e, mais ainda, fazem com que a transferência, sendo um fenômeno essencialmente ligado ao desejo, como dissemos na introdução, estabeleça uma possibilidade ali mesmo onde Eros se afirma: neste Sujeito Suposto Saber que condensa a função da transferência enlaça amor e saber em torno do vazio do desejo. “O eixo, o ponto comum (portanto) é o desejo do analista, que eu designo aqui como uma função essencial", nos diz Lacan. "Esse desejo (...) é precisamente um ponto que só é articulável pela relação do desejo ao desejo.”
Esta presença do desejo do analista como articulador da transferência se estrutura em torno do fato que “o desejo do homem é o desejo do Outro”. Esta afirmação acompanha Lacan desde os primórdios de seu ensino e, ao ser retomada no final do Seminário XI nos aponta aonde é que se engancha esse ponto de passagem da primeira para segunda clínica, quando se trata do Sujeito Suposto Saber: “Na relação do desejo ao desejo, algo é conservado da alienação, mas não com os mesmos elementos – não com esse S1 e esse S2 da primeira dupla significante, de onde deduzi a fórmula da alienação do sujeito (...) – mas de uma parte, com que é constituído a partir do recalque originário, da queda, do Untedrückung, do significante binário – e de outra parte, com o que aparece primeiro como falta no que é significado pela dupla dos significantes, no intervalo que os liga, isto é, o desejo do Outro.”
Podemos, agora sim, entrar na construção e manejo do matema da transferência, onde poderá se explicitar a função do Sujeito Suposto Saber.
Partindo do princípio de que o Sujeito Suposto Saber é o pivô da transferência, Lacan vai dizer que um sujeito só é suposto pelo significante que o representa para outro significante. Daí o matema que se constrói, penso eu, a partir mesmo do que trabalhamos quando tomamos a célula básica do Grafo:
 
               S                              Sq
               s (S1, S2,S3,.... Sn)
 
Assim Lacan justifica os elementos deste matema: “Reconhece-se na primeira linha o significante S da transferência, quer dizer de um sujeito, com sua implicação de um significante que diremos qualquer um, quer dizer que não supõe que a particularidade, no sentido de Aristóteles, que por esse fato supõe ainda outras coisas. Se ele é nomeado por um nome próprio, não é porque ele se distingue pelo saber, como veremos. Sob a barra, mas reduzida ao palmo do primeiro significante: o s representa o sujeito que daí resulta implicando no parênteses o saber suposto presente, dos significantes no inconsciente, significação que tem o lugar do referente ainda latente nessa relação terceira que a acrescenta ao par significante-significado”
Por isso, mais adiante neste mesmo texto, Lacan vai afirmar que a transferência “só se desenvolve ao preço do constituinte ternário que é o significante introduzido no discurso que aí se instaura, aquele que tem um nome: o sujeito suposto saber, formação, ela, não de artifício, mas de veia, destacada do psicanalisante.”
Esta posição nos diz que o que “importa aqui é o psicanalista na sua relação ao sujeito suposto saber” de forma direta, continua Lacan, para afirmar, em seguida, que “está claro que do saber suposto”, o analista “nada sabe”. “O Sq da primeira linha nada tem a ver com os S em cadeia da segunda e só pode aí se encontrar como achado. Apontamos esse fato para aí reduzir a estranheza da insistência que coloca Freud em nos recomendar abordar cada caso novo como se nós nada tivéssemos adquirido de seus primeiros deciframentos.”
Concluindo, com um certo curto-circuito que abre o tema da próxima postagem - o Desejo do Analista -, verifica-se que o Sujeito Suposto Saber se apresenta como pivô da transferência sendo, inclusive, condição da entrada em análise, e o final da análise apresenta-se uma desuposição de saber como resultado do tratamento. Esta desuposição, sob a forma do dês-ser do analista, se traduz na afirmação de Lacan, ainda no texto da Proposição, de que ao final de uma análise o analista que sustentou o Sq vai sofrer uma metamorfose, sendo “o parceiro que se esvai por não ser mais que um saber vão de um ser que se subtrai”, em outras palavras, “o analisante faz do objeto ‘a’ o representante da representação de seu analista.”
Assim se toca “a futilidade do termo liquidação da transferência por esse furo onde somente se resolve a transferência. (Vendo-se) aí, contra a aparência, a denegação do desejo do analista.”

terça-feira, 5 de novembro de 2013

O Sujeito Suposto Saber na Primeira Clínica

Lacan define a transferência como consequência imediata da estrutura própria à situação analítica, ou seja, como consequência direta do Discurso Analítico. Mais do que isso a transferência, no que ela implica o conceito de Sujeito Suposto Saber, pertence à própria estrutura do discurso analítico, estando para-além dos fenômenos que tentam preencher a dissimetria essencial estabelecida entre analisante e analista. Estes fenômenos podem ser resumidos em três: repetição, resistência e sugestão.
Vamos tentar fazer, neste momento, uma leitura do lugar do analista, tal como foi sustentado teoricamente por Lacan na Primeira Clínica quando o Outro (lugar do significante) desempenhou um papel fundamental.
O ponto de partida de uma psicanálise estabelece que o analista se coloque em uma posição de ouvinte de um discurso que ele mesmo incentiva, ao convidar o analisante a dizer tudo o que se passa por sua mente, sem omitir nada. Regra fundamental, que consiste em promover o que Freud denominou de Associação Livre de Idéias. Sabemos bem que “livre” as associações não o são, pois o próprio determinismo psíquico, ainda nos referindo à terminologia freudiana, encarrega-se de fazer suas escolhas, sempre levando em consideração as regras gramaticais e a sintaxe às quais a cadeia significante está submetida. Isto coloca o analista em uma posição digamos, passiva, deixando a atividade a cargo do analisante, que é quem fala. Esta posição já nos diz dos termos desta relação, pois é de nosso conhecimento que cabe ao ouvinte, com sua resposta, sua interpretação, decidir o sentido do que é dito e, mais ainda, a identidade de quem fala. Por esta afirmação podemos verificar que saber da dissimetria da relação esclarece e retifica os equívocos dos autores pós-freudianos que insistiam numa relação dual e dentro desta, na díade transferêncial - a contra-transferência. A posição de intérprete do analista coloca-o em lugar do “amo da verdade”, o que só faz aumentar a responsabilidade essencial de sua função, pois duplica o poder discricional da palavra.
Está claro que neste momento temos em mente um esquema que Lacan utilizou com muita freqüência na chamada primeira fase de seu ensino e que lhe serviu de base na construção de seu Grafo do Desejo. Refiro-me ao que se costuma chamar de célula básica da comunicação, onde um vetor se vê cortado em dois pontos por um outro vetor definindo-lhe o significado.
Neste esquema localizamos o analista ocupando o lugar de Grande Outro – A -, o que vai nos servir para esclarecer esta função de saber que é atribuída ao analista. Retomaremos este esquema mais à frente para tratar da função “semblante” de “a” como causa de desejo.
Do lugar de A, o analista é convocado primeiramente como aquele a quem o paciente se entrega na associação livre, pois atribui ao analista um saber sobre sua verdade. Acredita que o significado que ele vai ser atribuído pode restituir-lhe a estabilidade perdida. Em outras palavras pode-se dizer que ao analista é atribuída, pelo analisante, a função de saber sobre o sentido. Por um lado o analisante não se equivoca, pois o saber já está ali deste sempre, uma vez que ao ativar a transferência, o que se verifica é a “colocação em ato da realidade sexual do inconsciente” ou seja, restabelece-se uma relação aonde a pulsão vai nos dizer da rede de significantes que sustentam este sujeito no mundo: estes significantes que dizem do modo de gozo do sujeito ao mesmo tempo que apontam para o sintoma que vem no lugar onde falta o elemento que possibilitaria a “relação sexual”.
A propósito deste ponto, vamos relembrar uma citação que já foi trabalhada entre nós, quando tratamos da parte  II – qual é o lugar da interpretação?:
“A interpretação, para decifrar a diacronia das repetições inconscientes, deve introduzir na sincronia dos significantes que nela se compõem algo que, de repente, possibilite a tradução, - precisamente aquilo que a função do Outro permite no receptáculo do código, sendo a propósito dele que aparece o elemento que falta.”
Mas, não nos esqueçamos do que tanto insiste neste nosso trajeto pela “Direção do tratamento”: A experiência analítica só é possível se suspendermos toda e qualquer saber prévio sobre o analisante o que implica que o analista não deve se deixar enganar por este efeito de suposição de saber que lhe é atribuído. Na verdade, o que o analisante nunca vai perdoar ao seu analista é ele deixar-se enganar por esta posição de suposição de saber. Em seu Seminário XI, quando Lacan trabalha a “Presença do Analista” - presença que se constata quando o analista recusa a suposição de saber que lhe é atribuída - ele nos diz que a transferência negativa está sempre presente, de alguma forma, pois se trata de uma atenção especial do analisante no que concerne saber se o analista vai ou não se deixar enganar pelo canto da sereia do gozo de seu sintoma. Em outras palavras, se o analista vai ou não aceitar o convite de que venha gozar com ele de acordo com seu próprio modo de gozo.
Aceitar este convite é estruturar a relação ao nível do imaginário da cena da fantasia fundamental, aonde a resposta do analista vem confirmar o sentido pré-estabelecido do sintoma do sujeito, deixando de lado a possibilidade de que um desejo venha à luz. Esta vertente vai propiciar o congelamento de um Ideal do eu – lugar que identifica o “ser amado” - promovendo uma reestruturação do Eu ideal como identificação imaginária ao traço do Ideal, acreditando-se assim ser amado pelo Outro. Este é o equivoco do analisante ao acreditar que o seu saber, o saber do inconsciente, já está todo constituído no analista.
Concluindo esta parte, afirmamos que o Sujeito Suposto Saber pode ser lido nas referências que Lacan faz ao analista ocupando o lugar do Grande Outro.