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terça-feira, 29 de outubro de 2013

Sobre o Sujeito Suposto Saber

Hoje vamos tratar o conceito de Sujeito Suposto Saber. 
Conceito considerado por Lacan “pivô da transferência”. Não sei se podemos localizar precisamente quando Lacan utiliza este termo pela primeira vez, mas no Seminário “A identificação” Lição de 15 de novembro de 1961 ele vai empregar essa expressão Sujeito Suposto Saber. Este momento do ensino de Lacan ainda está sustentado nos parâmetros que costumamos chamar a primeira clínica ou clínica da prevalência do Simbólico. No entanto, já se percebe a preparação do campo do objeto “a” ao trabalhar o traço unário e a sua incidência na constituição do significante. No Seminário X, no ano seguinte, veremos o objeto “a” surgir com o estatuto que será consolidado no Seminário XI: enquanto um resto de gozo, consequente à operação significante.  
Cito aqui a passagem da lição do Seminário IX:
“É que nunca houve, na linha filosófica que se desenvolve a partir das investigações cartesianas chamadas do 'cogito', nunca houve, senão um só sujeito que prenderei com alfinetes, para determinar sob esta forma: o sujeito suposto saber. É necessário que dêem a esta fórmula uma ressonância especial que, de alguma forma leva consigo sua ironia, sua pergunta, e observem que ao referi-la à fenomenologia e, particularmente, à fenomenologia hegeliana, a função desse sujeito suposto saber toma seu valor de ser avaliado quanto à função sincrônica que se desdobra neste propósito: Sua presença sempre ali, desde o começo da interrogação fenomenológica, em um certo ponto, em um certo nó da estrutura, nos permitirá deduzir do desdobramento diacrônico suposto levar-nos ao saber absoluto.”
Depois vamos vê-lo referir-se novamente ao “Sujeito Suposto Saber” no Seminário XI, já no tempo do Real e do objeto pequeno “a”, ou seja, já dentro do novo parâmetro que define a segunda clínica ou Clínica do Real.  Lacan dedica a este tema toda uma lição, (XVIII) onde nos diz que a “transferência é um fenômeno essencial, ligado ao desejo como fenômeno nodal do ser humano, que foi descoberto antes de Freud”. Em seguida, neste capítulo que menciono aqui, ele faz referência ao “Banquete” de Platão para repetir o que disse Sócrates quando afirmou “que nunca pretendeu saber, senão o que é de Eros, que dizer, do desejo”. E, finalmente, “desde que exista em algum lugar o Sujeito Suposto Saber, existe a transferência. (...)  Cada vez que esta função pode ser, para o sujeito, encarnada em quem quer que seja, analista ou não, ela resulta da definição que acabo de lhes dar sobre a qual a transferência já está fundada”.
No texto “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o Analista da Escola”, ele vai matemizar a transferência destacando a função do Sujeito Suposto Saber: Depois de fazer um longo percurso que passa por Descartes, Hegel para quem "a verdade coloca a impossibilidade da coexistência das consciências, na medida em que se trata do sujeito prometido ao saber...", e Sartre onde o inferno é o outro, Lacan conclui dizendo que:  “O sujeito suposto saber é, para nós o pivô de onde se articula tudo o que é da transferência”.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

A transferência: Desvios e Retificações (IV)

A transferência, portanto, está no início do tratamento e se instala aí na tentativa mesmo de, atribuindo a um Outro o saber que falta, alcançar uma resposta que seja o saber último sobre esta sua verdade. É o Sujeito Suposto Saber que surge, fazendo valer um significante qualquer como aquele que poderia representar o sujeito.
Este atribuir a um Outro o que lhe falta está na base da relação amorosa por excelência: ama-se no Outro o “agalma”, objeto precioso, essência de um ser-em-falta que se ilude no amor ao saber.
Em se tratando da transferência, no entanto, vemos uma dessimetria colocada a priori já que nesta relação há pelo menos um que quer a mudança, há pelo menos um que calcula e, ao recusar o lugar de amante que lhe é oferecido responde, por seu não-saber, com um Che Voui ?, um desejo de saber.
Isto nos aponta uma mudança na maneira de ver as coisas pois, se no inicio da psicanálise muitos pensavam que o inconsciente era um não sabido que iria se tornando cada vez mais sabido, a introdução do objeto pequeno “a” por Lacan, nos diz de uma exteriorização do não-sabido que escapa à cadeia significante e se coloca radicalmente excluído dela.
Fazer operar este objeto “a” enquanto semblante no discurso do analista é tarefa a ser sustentada por alguém: um analista. “A psicanálise é o que se espera de um analista” nos diz Lacan no seu seminário XVII, e continua “e o que se espera de um analista é que faça funcionar seu saber e termos de verdade. É bem por isso que ele se confina num meio-dizer”.
Em outras palavras pode-se dizer ser preciso que exista um analista e este analista só existe na medida em que, se colocando com ponto fora da linha, faz operar o vazio onde uma verdade poderá ser transmitida e não um saber ser ensinado.
Esta operação de transmissão só se faz em ato, ato psicanalítico que, preparado pelo amor de transferência – é o amor que possibilita, enquanto signo, o giro do discurso da histeria para o discurso do analista – se conclui pelo vazio do sujeito. O ato acontece ali onde um sujeito deverá advir. Esta operação que tem como pivô o Sujeito Suposto Saber e por objetivo a destituição deste sujeito suposto, só se sustenta pelo desejo do analista.
Esta é uma operação lógica. O ato enquanto puro não-sentido institui um dizer e cria um fato, onde o axioma da existência – que Lacan traduziu por “Há do UM” (Y a d’l’UN) – aponta todo o tempo para a infinitização da demanda, fazendo valer a castração como saída do Édipo.
Sabe-se que são momentos de estagnação que promovem o que chamamos mais acima de “mal-a-mais” e que levam um sujeito a formular uma demanda de análise. Quando esta estagnação ocorre durante o tratamento é porque a transferência está operando enquanto resistência. Freud já nos esclareceu que estes pontos de resistência, pontos de silêncio que acontecem quando a associação livre é interrompida, são a conseqüência do analista estar ocupando um lugar destacado no pensamento do analisante. Michel Silvestre nos lembra que “estes momentos de estagnação longe de serem tempos mortos, perdidos para o sujeito, são ao contrário intervalos onde desponta um material específico, aquele da relação ao objeto, quer dizer, aquele da fantasia”.
Momento crucial onde o ato não deve faltar pois somente um ato vai fazer restaurar a função do objeto “a” enquanto semblante, assim como foi um ato que colocou o sujeito em análise. E não deve faltar sob pena do analista, então, se apresentar como presença maciça, fixa, entravando a espontaneidade da fala. Importante assinalar neste ponto que esta operação se sustenta no Desejo do Analista que faz barra ao gozo que se apresenta na cena analítica, relançando o vetor na direção de uma construção da fantasia.
Talvez se possa afirmar, depois deste trajeto que acabamos de fazer pela transferência em sua relação com o ato analítico, que é exatamente o ato, enquanto fio cortante da verdade, que, considerando “a necessidade lógica do momento onde o sujeito como X se constitui da“Urverdrängung, da queda necessária do significante primeiro”, restaura o significante enquanto puro não sentido e portador da infinitização do valor do sujeito. Temos aí então a verdade não enquanto horror mais enquanto uma variável quântica: A verdade é não toda! Com isto descarta-se a instalação de um único sentido como se tenta, quando se ensina um saber a alguém, assim como a abertura a todos os sentidos. O ato psicanalítico simplesmente abole todos os sentidos. Desta forma, a única saída que resta ao analisante é que faça uma passagem e construa um saber no campo que se abre em conseqüência da incidência do fio cortante da verdade, pelo ato psicanalítico.
Podemos concluir dizendo que este saber que se constrói, tem como centro um “não-saber” que, sendo o núcleo do entusiasmo, não surge por uma relação a si-mesmo, mas como pertencendo à estrutura de um modo essencial, até o ponto de constituir a possibilidade do “Único saber oportuno”

terça-feira, 15 de outubro de 2013

A transferência: Desvios e Retificações (III)


… todo conflito deverá ser ganho na esfera da transferência. (Freud, 1912)

E no começo da psicanálise está a transferência e graças ao analisante. A transferência é, sem dúvidas, o eixo estratégico de uma análise e um dos conceitos fundamentais da psicanálise, juntamente com o Inconsciente, a Repetição e a Pulsão.
Para começar, escolho a definição da transferência que Freud estabeleceu em 1905, no pós-escrito do caso Dora. Assim ele diz:
“O que é a transferência? É uma nova edição ou cópia exata dos impulsos e fantasias que apareceram e se fizeram conscientes durante o progresso da análise; mas ela tem uma peculiaridade, que é característica: trocar alguma outra pessoa do passado pela pessoa do médico. Para dizer de outra forma: experiências psicológicas são revividas, não como pertencentes ao passado, mas como atualidade, aplicando-se à pessoa do médico no momento presente. Algumas dessas transferências tem um conteúdo que só é diferenciado do seu modelo original pelo fato de ser a pessoa do médico a envolvida.”
“Essas são então, continua Freud – para manter a mesma metáfora – meramente novas impressões ou reimpressões. Outras são mais ingenuamente construídas: seu conteúdo foi sujeito a uma influência moderada – Sublimação, como eu a chamo – e podem até tornar conscientes a trama e tirar vantagens inteligentemente de alguma peculiaridade real na pessoa do médico ou nas circunstancias e se ligar a isto. Essas, então, não serão novas impressões, mas edições revisadas”.
É verdade que este conceito de transferência em Freud deriva de sua constatação, em “A interpretação dos sonhos” de que a energia (libido) investe livremente alguns significantes, podendo surgir ligada ao que, aparentemente, nada tem a ver com seu ponto de origem. A esta possibilidade de investir, ora um ora outro significante, ou palavra, como ele diz, Freud denominou de “Uberträngung” que se traduz por transferência. Esta “Uberträngung”, transferência, refere-se especificamente à transferência de valor que se faz em contabilidade quando se transporta um número de uma página a outra, p.ex. 
O conceito de transferência como repetição vai ser retomado por Lacan no Seminário XI para explicitar que, se existe repetição na transferência, a transferência não é toda repetição e, mais ainda, que o que se repete na transferência não são as imagos do passado que seriam reeditadas no presente da situação analítica, mas sim a repetição do impossível, a falta, que habita a seqüência significante. 
Isto talvez explique porque a principio a transferência foi vista com um empecilho ao trabalho psicanalítico, como uma resistência, na medida em que a sequência significante e, consequentemente o sentido, era enfatizado para que nada do Real em jogo na transferência pudesse vir à tona. Somente após o estudo do Caso Dora é que Freud passou a perceber as possibilidades de se trabalhar com a transferência, transformando-a numa das principais armas da psicanálise.
Esta possibilidade se trabalhar com a transferência, suplantando o que existe de resistência somente pode ser explicitada se verificarmos a eficácia do ato analítico como aquele que possibilita uma análise: “a psicanálise não poderia se instaurar sem um ato, sem um ato daquele que aí autoriza a possibilidade, sem um ato do psicanalista, e que no interior deste ato da psicanálise, a tarefa psicanalisante se inscreve …”
Formalizar o momento de uma análise onde o ato psicanalítico acontece, instalando no lugar da verdade um saber que “possa operar enquanto verdade”, é nosso objetivo, neste trajeto que estamos propondo para dar conta do momento atual da transferência em nossa prática clínica. 
Podemos dizer que um sujeito procura análise no momento em que se torna insuportável para ele sua divisão entre saber e verdade. Isto se dá no ponto onde o deslizamento metonímico da cadeia significante se interrompe: “As coisas até aqui caminharam, nos diz alguém, mais não sei porque pararam de andar e até pioraram”. Lacan no seu seminário XI nos diz que “os pacientes, não se satisfazem, como se diz, do que eles são. E portanto, nós sabemos que tudo isso que eles são, tudo isso que eles vivem seus sintomas mesmo, surgem da satisfação, (…) eles satisfazem a qualquer coisa (…) e estando neste estado de tão pouco “contentamento”, eles se contentam”. Só que “por este tipo de satisfação eles se dão muito mal. Até certo ponto é este mal-a-mais a única justificativa de uma intervenção”1 para que no nível da pulsão este estado de satisfação possa ser retificado.
Assim sendo, é a partir deste “mal-a-mais” que, surgindo neste ponto em que o saber constituído do sintoma deixa de obturar a verdade da qual o sujeito não quer nada saber, que vamos ver nascer uma demanda de análise e com ela a transferência.
Esta verdade da qual o sujeito não quer nada saber foi, na primeira fase do ensino de Lacan, colocada em oposição ao saber pelo seu caráter nascente na palavra. Ela corresponde à verdade horrível da castração. Já na segunda fase, a verdade não é mais formulada no singular e torna-se uma variável. Em 1973, em sua “Nota italiana”, o horror da verdade é deslocado para o saber: Lacan vai opor ao horror de saber, o desejo de saber do psicanalista”.
Nossa prática nos leva a constatar que a estabilidade que precede uma demanda de análise se sustenta em uma identificação a um significante que aglutina, de alguma forma, um sentido para um terminado sujeito.  A este efeito semântico que estabiliza o sujeito no seu sintoma, um abalo semântico, conseqüência de um encontro com o Real, vai abrir a possibilidade para que uma demanda de análise se constitua. Temos, na história da psicanálise dois exemplos, o primeiro é retirado dos casos clínicos de Freud. Trata-se do encontro do Homem dos Ratos com o Capitão Cruel que vem desfazer estabilização que ali estava constituída pela identificação com o Oficial que ele é, e que está articulada ao Chefe dos Exércitos. Esta articulação está sustentada na “virtudes militares”. O encontro com o Capitão Cruel e sua descrição do suplício dos ratos vai evocar um gozo que não é um significado do Outro, como são as “virtudes militares”. Este encontro, portanto, vai provocar o abalo semântico evocado acima. Um outro exemplo alude a um analisante que, depois de suportar por muitos anos uma relação extraconjugal de sua esposa, sofre seu abalo semântico no momento em que soube que o amante de sua mulher fazia erros de ortografia. Se por um lado este “rival disortográfico” faz rir, por outro lado, ao ser valorizado pela mulher, este “rival” introduz no Outro um abalo semântico, da mesma forma que o Capitão Cruel com seu relato da tortura. A transferência entra, portanto, como o que vem re-estabelecer o efeito semântico.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

A transferência: Desvios e Retificações (II)

A terceira face da pirâmide herege, como diz Lacan, está constituída pela teoria em que o analista é reconhecido como o representante da realidade e que tem por tarefa fazer amadurecer o objeto em uma estufa. Este objeto, o analista, é o que restaria ao sujeito em seu mergulho na patologia, por isso sua única saída seria a “introjeção intersubjetiva”.
A transferência como “introjeção do analista” teve como seu mais forte defensor, na psicanálise de língua francesa, Maurice Bouvet.
M. Bouvet é o analista ao qual Lacan se refere no texto, sem mencionar seu nome. Sua teoria se centrava na distância ao objeto. Pode-se dizer que o tratamento de uma neurose consistia em “meter o nariz no objeto”. Daí vários textos que tratavam da "devoração fantasmática" do analista.
Em “A direção do tratamento...”, Lacan vai tomar esta teoria como um sintoma da má utilização da função do falo, que, para ele, era “o modo de presença do sujeito no desejo”. Ora, se o falo dá ao gozo uma medida simbólica, essencialmente sob o significante da impotência, não pensa-lo como uma negatividade, corre-se o risco de valorizá-lo excessivamente e transforma-lo em um problema de distância efetiva, por isso surgem estes restos de uma geometria, digamos métricas, do falo que acabará sendo devorado.
Para tratar desta geometria, Lacan propõe uma geometria sem medida que é a topologia. Assim à teoria da distância da medida fálica, opõe-se a topologia do objeto.
É, portanto, para questionar o papel do falo enquanto modo de presença do sujeito que Lacan vai tomar dois exemplos, destacando o cuidado que o analista deve ter ao manejar este lugar do falo.
O primeiro paciente ao qual Lacan se refere é um obsessivo que ele recebe em análise logo após este ter se submetido a uma análise que estava sustentada na teoria da introjeção subjetiva, ou seja, teoria que levava em conta a distância do objeto. Nossa atenção é dirigida, por Lacan, para percebermos que, ao perseguir o paciente com “a distância ao analista”, chegou-se a desenvolver um amor homossexual com uma pessoa de seu ambiente. Este amor veio para restaurar um terceiro dentro da relação dual que se estabeleceu na análise. Pode-se afirmar isto levando em consideração o fato de que a significação fálica vem, exatamente, questionar na metáfora paterna ao terceiro, o pai, entre o sujeito e o desejo da mãe.
O segundo exemplo parte de um caso de fobia. Trata-se de um paciente que tinha medo, uma fobia mesmo, de que as pessoas “mexessem” com ele por causa de seu tamanho.  “Este jovem que era piloto da marinha mercante, teve que abandonar seu trabalho por causa de uma idéia obsessiva que o atormentava: via-se muito alto e se sentia ridículo. De fato era um rapaz de grande estatura, media aproximadamente 1,90 mts”. Como consequência de um certo tempo de análise, ele se torna voyeurista. Procura olhar dentro dos banheiros do cinema às mulheres urinando. Lacan se pergunta porque esta análise desencadeou esta perversão transitória. Este paciente é de Ruth Leibovici, esposa de do presidente da Sociedade de Psicanálise da qual Lacan havia recém saído. O aparecimento desta perversão transitória é descrito como tendo surgido logo depois que um sonho é trazido à análise como reação “a uma interpretação que dera de uma certa armadura surgida, em posição de perseguidor e, ainda por cima, armada com uma bomba de Flit, como sendo a imagem da mãe fálica.” A analista interpretou associando esta figura materna a ela, encerrando o circuito transferencial numa relação dual. Ficou, no entanto, uma questão: o que é esse objeto enigmático que está nas mãos da armadura-analista? É verdade que a própria analista se questiona se não deveria ter falado do pai, mas, como lembra Lacan, como o pai era uma figura ausente na vida real, ela acaba se desviando desta intervenção. Ou seja, uma interpretação que leva em conta a realidade mais do que a fantasia do paciente.
Esta interpretação, ao reforçar o caráter enigmático do objeto fálico, acaba por enviar o analisante a ir ver, ou seja, não somente provoca um acting-out (lembremos do caso descrito por Ernst Kris a que costumamos chamar “o homem dos miolos frescos”) como também leva ao que está sendo chamado aqui de uma perversão transitória. Como se não bastasse tudo isso, o paciente também força a analista a introduzir a presença de seu marido que era psiquiatra e foi quem lhe encaminhou este paciente. Desta forma o paciente restitui, de uma forma patológica, o triângulo edípico para poder respirar um pouco, em meio a tantas baforadas de Flit.
Esclareço esta passagem, acrescentando o que Laurent nos diz ao comentar este texto de Lacan: “A função essencial do falo é designar um outro lado fundamental. O Nome-do-Pai quando está coordenado com a significação fálica fica fora do parêntesis – NP (A/falo) – Quando Sptiz, (p. ex.) tenta reduzir a função paterna à do estranho, segundo seus termos, estamos diante de um mal menor, que de todos os modos evita essa função essencial do falo que é designar o outro lugar da metonímia. Quando o analista se opõe a este outro lugar (da metonímia) levando incessantemente o paciente a um face a face com ele, desencadeia, em determinado momento, o chamado a este outro lado”.
É neste ponto do texto que Lacan traça uma diferença muito importante entre o objeto fóbico e o fetiche: “(Eu) lhes ensinei a distinguir o objeto fóbico como significante para todo uso, para suprir a falta do Outro (vide caso do pequeno Hans) e o fetiche, fundamental a toda perversão, como objeto percebido no corte do significante”.
Laurent esclarece esta passagem dizendo, primeiro, que a evolução do objeto “a” na teoria de Lacan vai modificar a afirmação feita em 1958: “De todo modo, mostra como o objeto fóbico é uma metáfora, e por isso é ‘um significante para todo uso’. O fóbico, por trás de toda as portas de sua vida, encontra o significante que o inquieta, que lhe serve para tudo, que dizer, para não fazer nada, porém faz tudo com ele, como o pequeno Hans faz tudo com seu cavalo. O que é, em troca, o fetiche? O objeto que se aloja na rachadura do significante e sabemos que a rachadura significante é o intervalo entre S1 e S2, ali onde o paciente de Kris colocava o nada de seu desejo. O fetichista coloca ali algo, o fetiche, porém a operação é idêntica, coloca ali um objeto”.
Lacan vai destacar a função do objeto transicional de Winnicott  dizendo que ele vai ocupar este mesmo lugar: o intervalo significante, mas com uma outra função: a de mediação entre o sujeito e o Outro. Lacan não se furta a dizer que a noção de objeto “a” foi gestada no objeto transicional de Winnicott.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

A transferência: Desvios e Retificações (I)

Hoje vamos tratar da transferência no que diz respeito aos desvios apontados por Lacan no texto “A direção do tratamento”. Vamos fazer um trajeto ao inverso, portanto. Primeiro os desvios e, depois, vamos trata-la a partir do que Freud construiu e que Lacan desenvolveu.
Na primeira parte do item "IV – Como agir com seu ser", Lacan chama a nossa atenção para um fator muito importante que, durante muito tempo se prestou a muitas confusões no desenvolvimento do conceito de transferência. Fazendo referência a Daniel Lagache desenha-se a importância de introduzir “na função do fenômeno as distinções de estrutura, essenciais à sua crítica”. Explicita-se, nesta passagem, que se trata de uma “alternativa pertinente (...) entre a necessidade de repetição e a repetição da necessidade.” É verdade, no entanto, que esta distinção só será plenamente desenvolvida por Lacan por ocasião de seu Seminário XI, quando ele vai colocar a repetição como um dos conceitos fundamentais da psicanálise, juntamente com os conceitos de inconsciente, transferência e pulsão.
Outro aspecto criticado é “o fazer dela (a transferência) a sucessão ou a soma dos sentimentos positivos ou negativos que o paciente vota a seu analista.” Na esteira deste questionamento Lacan retorna ao que já foi ligeiramente mencionado em nosso último encontro: o estatuto da transferência no começo, durante e ao final de uma análise. Em seguida lê-se um elogio explicito a um artigo de Ida Malcapine: “The development of the transference”. Mesmo sendo um escrito que não leva sua crítica aonde se espera, Lacan não deixa de elogia-lo, pois se pode ler ali descrita a dificuldade com a qual os analistas se deparam quando se trata de definir o que é a transferência. Malcapine afirma: “Não existe uma única contribuição que compreenda todos os fatos e as várias opiniões (sobre a transferência). Isto é tanto mais notável quanto as diferentes opiniões levantadas sobre o mecanismo da transferência e seu modo de produção parecem pouco compreendidas." Mais adiante ela continua dizendo que isto talvez tenha origem no fato de que “parece tacitamente assumido que o assunto está totalmente compreendido”, além de que se escrever sobre a transferência de uma forma mais  “mais descritiva que explanatória”, ou seja, não se distingue da fenomenologia transferencial a estrutura que a sustenta. A partir deste ponto Malcapine faz um extenso percurso sobre a evolução do conceito, começando por distinguir a transferência da sugestão. Não vou entrar nos meandros desta discussão, pois além de extensa ela vai nos desviar dos nossos objetivos.
A segunda parte começa com uma crítica da parcialidade das teorias com as quais os teóricos da psicanálise tentavam abordar a transferência (referência à 1958). Parcialidade esta que teve reflexos diretos no manejo que implicaram, obviamente, na direção do tratamento. Verifica-se, com Lacan, três particularidades deste momento e suas consequências.
O primeiro está agrupado sob a chancela do “geneticismo” e se sustenta principalmente nas incursões teóricas de Anna Freud e fundamentou os “fenômenos analíticos nos momentos de desenvolvimento implicados e se nutriu da chamada observação direta da criança”, correlacionando tudo isso ao que se costumou chamar de “análise das defesas”. O livro “Os mecanismos de defesa” foi durante muito tempo um clássico e um verdadeiro manual de técnica psicanalítica. O fracasso desta metodologia de trabalho, como explicita Lacan, fica claro pela “solidariedade que supõe (...) à sucessão de fases pela qual Freud havia tentado ligar a emergência pulsional à fisiologia”. Os resultados desta forma de atuar acabam por estabelecer certos “patterns” que buscam “em seu conformismo as garantias de sua conformidade”. Assim, o êxito era conhecido pela “passagem para o patamar superior de renda e a saída de emergência da ligação com a secretária, regulando a escape de forças rigorosamente subjugadas no matrimônio, na profissão e na comunidade política...”. Nesta linha, até mesmo a forma como se trabalhou os conceitos de pulsão de vida e de morte está na contra-corrente do pensamento de Freud: “como o jogo de um par de forças homólogas em sua oposição”.
Em seguida acompanhamos Lacan tratando do que se pode chamar a segunda face da transferência, ou seja “o eixo tomado da relação de objeto” que enfatiza a transferência como a capacidade de amar. Esta teoria, ironiza Lacan, assim como o geneticismo tem a sua origem na nobreza da psicanálise: Abraham. Seu princípio se resume em: é a capacidade de amar que guia o sujeito em direção ao real, ou melhor, à realidade, sendo esta sua única via de acesso. A idéia de um amor total vai mesmo na direção oposta ao que o próprio Abraham trouxe como contribuição à teoria analítica: a parcialidade do objeto. Esta possibilidade do amor total como final de um percurso pela transferência traz, como conseqüência, a exclusão da psicose do tratamento analítico.  Partir do princípio que o psicótico não pode amar é, certamente hoje, considerado um grande equívoco, já que é sabido que na psicose o amor se manifesta claramente – vide os episódios de erotomania, por exemplo, que acontecem na condução de um tratamento com o psicótico.  Mas foi exatamente o trabalho com a psicose que propiciou uma modificação desta dialética entre o amor parcial do objeto e o delírio do amor genital. Esta teoria pode ser resumida opondo-se o amor pré-genital ao amor genital: todas as doenças da vida psíquica eram pré-genitais e o sublime, o que finalmente brinda a felicidade de viver, é o genital. Esta conceituação levou autores à descrições de relações amorosas delirantes, fruto da imaginarização de um relação sexual possível graças à psicanálise.
Impossível, diz Lacan, perceber “o objeto que se apresenta quebrado e decomposto” como um fator patológico, pois é esta a única possibilidade do objeto. Questiona-se, ao mesmo tempo  “o que tem a ver com o real esse hino absurdo à harmonia do genital”. Nesta trilha, vamos encontrar mais adiante no ensino de Lacan o famoso aforismo: “a relação sexual não existe”.
Conseqüência disto é a crítica feroz e explicita àqueles que “tentam camuflar Eros, o Deus negro, de carneirinho do Bom Pastor” para nada saber do que Freud define como as barreiras e as degradações da vida amorosa. É fundamental, continua Lacan, que não se confunda a estrutura do sublime com o orgasmo perfeito. Tudo isso acaba por colocar a idéia da “normalidade delirante da relação sexual” como um “fardo inédito (...) que amarramos para (colocar n)os ombros dos inocentes”.