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terça-feira, 13 de agosto de 2013

A Interpretação: Da Palavra à Escritura (O caso Dora)

Na subdivisão sete do texto "a direção do tratamento..." Lacan vai se ocupar de dois casos clínicos de Freud para nos dizer da importância da retificação da relação do sujeito com o Real. Mesmo que neste momento saibamos que Lacan se refere ao Real mais em termos de realidade do que ao Real como ele mesmo vai desenvolver mais tarde, o que está aqui descrito a respeito da retificação subjetiva continua atual. Em Dora, o que se apresenta é que, longe de estar numa posição onde se faria necessária uma adaptação à realidade como preconizavam os analistas da IPA, ela se encontrava perfeitamente adaptada, pois “mais do que participar, ela se constituiu a cavilha dessa desordem”. Do que se trata, portanto é de mostrar-lhe que “ela está mais do que bem adaptada à situação, uma vez que concorre para sua fabricação”. Um pequeno comentário sobre o que Lacan tantas e tantas vezes comentou a respeito do caso de Dora. Esta intervenção de Freud aponta o caminho para uma possível saída deste sujeito ao tentar demonstrar que o sintoma histérico se resolveria da mesma forma que um sonho se interpreta, ou seja, que a interpretação do sintoma poderia se resolver pelo deciframento do sentido inconsciente, este sempre sexual. Freud completa esta sua proposta dizendo que este sentido se interrompe na medida em que ele reencontra o desejo inconsciente. Em Dora, no entanto, constata-se que faltou uma interpretação. O próprio Freud diz isso quando, em sua nota de 1923, atribui a interrupção do tratamento ao fato de não ter interpretado a moção de amor homossexual determinante em sua paciente e que se apresentava em sua relação com a Sra. K. É verdade que esta observação já está na trilha do que ele mesmo pode observar no caso da Jovem Homossexual e consiste em uma tentativa de retificar o que ele mesmo disse na ocasião da interrupção do tratamento de Dora: que este “agieren”, ou seja, a sua saída, teria sido conseqüência, de um equivoco no manejo da transferência, na medida em que ele, Freud, seria o substituto do Sr. K. que ocupava o lugar do pai.
Talvez por tudo isso foi possível a Lacan efetuar uma nova leitura do Caso Dora. Leitura que ele se propôs em várias ocasiões, sendo a mais conhecida e discutida aquela que ele propõe no seu texto “Intervenção sobre a Transferência” que se encontra publicado nos “Escritos”. Outra ocasião muito importante foi a releitura deste caso no Seminário IV “A relação de objeto”.  Um pequeno resumo do que diz Lacan pode ser feito em três formulações que se sustentam, como ele mesmo diz, nos preconceitos freudianos: a primeira foi a sua incapacidade de reconhecer, no momento, a tendência “homossexual”, a segunda fica por conta de seu movimento em direção a interpretar a transferência sempre na vertente do pai “natural” edípico, que leva a uma terceira, qual seja, a de acreditar que o tratamento pode ser dirigido a partir de uma posição de um pai amoroso.  Em outras palavras, o que Lacan nos aponta nas suas releituras dos anos 50 é que a confusão de Freud se sustentou em função da não distinção entre as posições simbólicas e imaginárias na transferência.  
Mas é no Seminário XVII, “O avesso da psicanálise” que Lacan vai nos trazer uma nova releitura do caso Dora, desta vez apontando para o que hoje costumamos chamar de “uma leitura para-além do Édipo”.
O pai de Dora, nos lembra Lacan, é um homem castrado sexualmente, ou seja, um homem que se mostra deficiente em relação à função fálica, o que implica que esteja afetado simbolicamente. O lugar de Mestre no discurso da Histeria, proposto por Lacan nesta época, (1970) vai nos dizer que o pai não é apenas procriador, mas que está sempre em posição de criação potencial. Este é lugar do S1, à esquerda e acima da barra. Entretanto, convém ressaltar que esta é uma posição um pouco fora de circulação pois, como diz Lacan, esta afetação simbólica do pai da histérica, deficiente e criador em potência, é uma posição idealizada. Em outras palavras, o pai de Dora, castrado, não é menos capaz de fazer o papel de pai idealizado a ponto de poder desempenhar o lugar de mestre no discurso onde ele se inscreve. É neste ponto que vemos o Sr. K ser chamado como “o terceiro homem” como aquele que possui um órgão. Ela, entretanto, não que gozar do órgão, mas sim do envoltório deste órgão precioso, como pode ser interpretado a partir do sonho da caixa de jóias. Este homem que tem acesso a Sra. K, em que Dora está interessada na medida que ela é capaz de sustentar o desejo do pai idealizado, ao mesmo tempo em que priva Dora deste desejo. Dora, portanto, se vê duplamente excluída: do amor e do desejo do pai. Esta interpretação pode esclarecer porque Dora vai recusar o gozo que lhe oferece o Sr. K: ela quer outra coisa. O que Dora busca é “o saber, como meio de gozo, mas para coloca-lo ao serviço da verdade, da verdade do mestre que ela, enquanto Dora, encarna”. E esta verdade nada mais é que a verdade de sua castração.  Em outras palavras, o que interessa à Dora, e às histéricas em geral, é a produção de saber sobre a verdade do mestre, que ela leva ao conhecimento de todo o mundo. É nisso que Freud acaba por ajudar Dora, levando-a a interromper o tratamento.
A experiência de Freud com Dora acaba por leva-lo ao “rochedo da castração”, reconhecido na demanda de um amor incondicional como penisneid - “inveja do pênis”: “Isto termina na reprovação feita à mãe pela filha por não tê-la feito menino, quer dizer, sob a forma de frustração que, na sua essência significativa (...) se desdobra por um lado em castração do pai idealizado, que dá o segredo do mestre, e por outro em privação, a assunção pelo sujeito, feminino ou não, do gozo de ser privado”.
Para concluir este nosso percurso pelo caso Dora em suas várias releituras lacanianas, vamos resumi-lo assim: O que aspiram o mito de Édipo e a interpretação psicanalítica que se apóia nele, é fazer o papel de um saber que se pretende verdade. Interpretar a partir do Édipo, é faze-lo em nome de um pai idealizado que esconde a verdade de sua própria castração, como nos diz Eric Laurent.
Esta última releitura do caso Dora foi o que, provavelmente levou Lacan a propor, em seu Seminário “RSI” (1975), a definição do pai a partir da causa. O pai que merece o respeito e o amor é aquele que está orientado a partir de uma causa, o que não implica a suposição de nenhum ideal, bem ao contrário. Uma interpretação psicanalítica não pode excluir esta condição do pai, nem se fazer em nome do pai. Em outras palavras, é preciso ir além do pai à condição dele se servir.
Esta última afirmação que Lacan vai fazer em 75, se não me engano, no Seminário já citado: “RSI”, nos esclarece uma pequena passagem desta subdivisão que estamos tratando aqui, quando afirma que é preciso reconhecer o poder que emana da transferência e que “esse poder só lhe dava a solução do problema na condição de não se servir dele, pois era então que assumia todo o seu desenvolvimento de transferência.”

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